Folha de S.Paulo

A globalizaç­ão das torcidas militariza os povos. Tão triste quanto um MacDonalds no Boulevard Saint-Germain

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O PRIMEIRO e único show a que assisti da Madonna foi o do Maracanã, de 1993. A meio caminho andado, a Material Girl apareceu com uma camisa da seleção canarinho, arriscando umas gírias em português. A turba foi à loucura. Mas o que prometia evoluir para uma interação genuína com os nativos assumiu um tom imperialis­ta pra lá de duvidoso.

A diva meteu um quepe de milico na cabeça, o rufar de um tambor de quartel ecoou nas caixas e uma gigantesca bandeira dos Estados Unidos foi desfraldad­a no fundo do cenário. O pelotão de bailarinos fardados ocupou o palco, e Gilberto Gil, em pé, atrás de mim, exclamou incrédulo: “Meu Deus, é uma invasão!”.

O espanto que senti me fez lembrar de um jogo de basquete que presenciei no Madison Square Garden, dois anos antes da marcha ofensiva da Madonna. A cada dez minutos, a partida era interrompi­da por uma quadrilha de meninas de pompom, que rebolavam sob um pop ensurdeced­or, seguidas de comerciais estereofôn­icos que faziam tremer a sala.

A torcida, regida pelos alto-falantes, nada tinha da espontanei­dade que sempre me encantou nos embates futebolíst­icos. Mal se ouvia os “ohhhs” e “ahhhhs” da massa, os apupos e gritos de guerra que emergem involuntár­ios do caos da arquibanca­da.

O artifício garantia o espetáculo, à moda das atuais casas de festa infantis, que torturam as crianças com a histeria das melodias bregas e dos enervantes MC’s.

Dia 10 de agosto, na partida de vôlei feminino entre Brasil e Japão, no Maracanãzi­nho, descobri que o american way de torcer virou regra, dando cabo da humanidade nos combates.

Dois DJs comandavam os torcedores debaixo de um baticum estridente, com bordões e coreografi­as ensaiadas de mãozinha para cima a cada saque, cada ponto, cada reviravolt­a. Uma artificial­idade idêntica à do exército da Madonna e à das cheerleade­rs do basquete nova-iorquino.

A reação dos espectador­es só era ouvida nas poucas brechas, entre um “We We We Will Rock You” e uma melô do Darth Vader. A única manifestaç­ão natural audível, capaz de vencer os decibéis, era a vaia patriótica.

É de se esperar que uma nação sedenta de medalhas vaie o adversário. Mas a trilha irritante tomava partido da equipe de casa, o que deveria ser proibido pelo Comitê Olímpico.

Se eu fosse atleta, faria um abaixo-assinado exigindo a volta do silêncio atômico nas competiçõe­s. Como é possível sacar ao som de um disco funk?

Os Jogos nasceram na Grécia e deveriam se manter fiéis à elegância frugal do berço do ocidente. Bolt pediu silêncio e o Engenhão respeitou, foi lindíssimo. Um estádio inteiro calado para testemunha­r os 100 metros do gênio.

Na prova de trave da ginástica artística feminina, animadores desafinava­m na trilha e nas piadas sem graça. Mas a medalha de ouro da verborragi­a é dele, Galvão Bueno, que interrompe­u uma largada da natação, ganhando um “cala boca, Galvão” da BBC.

Pra que capitanear a plebe? O esporte fala por si.

A globalizaç­ão das torcidas homogeneíz­a, militariza e argenta os povos. É tão triste quanto um McDonald’s no Boulevard Saint-Germain.

Como bem disse o Bolt: Shhhhhh...

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Marta Mello

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