Folha de S.Paulo

A democracia é uma forma de idolatria, afirma um trecho

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do material didático utilizado pela facção terrorista Estado Islâmico (EI).

O texto, lido por jovens nas escolas, explica que o governo do povo e a separação dos poderes são “em sua essência, clara descrença”.

Esse é o tipo de visão que permeia o ensino no território controlado pelo Estado Islâmico na Síria e no Iraque, onde declarou em 2014 seu autoprocla­mado califado.

Segundo um estudo recente, essa interação entre ensino e doutrina é uma abordagem inovadora em relação a outras formações terrorista­s.

Essa milícia tem levado a sua crença até as salas de aula —onde o treinament­o para a decapitaçã­o, um dos símbolos de sua violência, é praticado com bonecos.

Para Jacob Olidort, autor da pesquisa, a educação é uma das prioridade­s do Estado Islâmico. A estratégia visa deixar um “legado intelectua­l” às próximas gerações de combatente­s, somando-se a suas conquistas territoria­is.

A liderança da organizaçã­o radical, que supervisio­na o material didático, quer formar militantes com conhecimen­tos em áreas como a matemática e a literatura.

O relatório de Olidort foi publicado pelo Instituto Washington para a Política ao Oriente Próximo. “O que eles estão fazendo vai além do feito por qualquer outro grupo”, ele afirma à Folha.

Não por suas visões radicais em si, segundo o especialis­ta, mas por como integram a doutrina à educação. VISÃO Assim como a Al Qaeda e outras facções radicais, o Estado Islâmico segue a linha salafista do islã. O salafismo prega a interpreta­ção literal dos textos e o retorno a um passado visto como mais puro do que o presente.

“É um discurso específico do que significa ser muçulmano e em que um muçulmano tem que acreditar.”

Ao ensinar disciplina­s como matemática e literatura a partir dessa ideia, a milícia se mostra preocupada com que jovens militantes estejam instruídos em campos básicos do conhecimen­to, com os quais poderão manter e defender o território de seu autodeclar­ado califado.

Entre o material analisado por Olidort está está um livro sobre literatura árabe. É possível encontrar, nessas páginas, uma visão conflitant­e do conhecimen­to islâmico.

O volume inclui obras produzidas durante o período do califado abássida (sécs. 8 a 13), por exemplo, poemas de Al-Mutanabbi (séc. 10).

Estranha a menção no texto, pois esses séculos são, segundo o pensamento salafista, justamente o período em que o islã desviou-se de sua suposta “pureza original”.

Não há justificat­iva nos livros escolares para o estudo do cânone literário em contradiçã­o com a crença extremista. Mas Olidort explica à reportagem algumas estratégia­s utilizadas pelo Estado Islâmico para trabalhar esses conteúdos em sala de aula.

O objetivo é, diz, que o currículo escolar dê a impressão de linearidad­e entre o passado e a interpreta­ção contemporâ­nea radical seguida pela milícia radical.

“Eles organizam o estudo de maneira que este século pareça ser uma extensão natural do que veio antes.”

Por exemplo, determinad­os autores de períodos anteriores têm suas biografias moldadas para encaixar-se à narrativa do Estado Islâmico.

Textos medievais são também intercalad­os com escritos de autores recentes como o extremista Abu Musaab alZarqawi (1966 -2006), que em 1999 fundou a organizaçã­o terrorista Tawhid wa al-Jihad, mais tarde transforma­da no atual Estado Islâmico. ESTRUTURA A organizaçã­o do currículo escolar, aparenteme­nte planejada aos detalhes, ainda não está totalmente clara.

Olidort afirma, por exemplo, que não há o nome dos autores nos livros que estudou. Mas o pesquisado­r supõe, a partir de documentos, que há um corpo editorial e ao menos um editor-chefe.

“Minha teoria é de que é uma área supervisio­nada pela liderança sênior, pois as ideias são importante­s para eles”, diz o pesquisado­r.

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