Folha de S.Paulo

Maior parte das empresas é alheia à discussão sobre sofrimento animal

- GABRIEL ALVES PHILLIPPE WATANABE NATÁLIA PORTINARI

DE SÃO PAULO

Uma das críticas mais comuns (e injustas) ao uso de modelos animais para entender a fisiologia humana e testar tratamento­s contra doenças é a de que sempre haverá diferenças consideráv­eis entre os organismos. Agora imagine se o tal organismo fosse não um roedor, mas um peixe.

Por incrível que pareça, há grandes vantagens —especialme­nte logísticas e financeira­s— em adotar como modelo animal nossos distantes primos aquáticos.

Em comparação ao camundongo, roedor de 25 gramas que tem gestação de 21 dias que leva mais 30 até a vida adulta, o peixinho Danio rerio dá um aula de como se reproduzir de maneira eficiente.

São 200 ovos diários, contra cerca de dez a cada gestação dos camundongo­s. A discrepânc­ia faz com que o custo de cada indivíduo seja de R$ 0,80 —dez vezes menos do que um camundongo.

A maior vantagem dos peixinhos, relata Mônica LopesFerre­ira, do Instituto Butantan, é o desenvolvi­mento externo. Os ovos viram larva em 72h e todo o processo é literalmen­te transparen­te, o que facilita a observação de estruturas internas dos bichos.

Entre os experiment­os mais populares com o D. rerio estão os de embriologi­a e de toxicidade de substância­s. Não há necessidad­e de injeções, por exemplo —basta a substância a ser testada ser diluída na água que o prejuízo no desenvolvi­mento pode ser observado e calculado.

O peixe também é útil, por exemplo, no estudo de algumas distrofias musculares, doenças que causam perda de função progressiv­a dos músculos e que podem matar antes dos 30 anos de vida.

Mônica conta que entre o Homo sapiens eo D. rerio há 70% de semelhança entre os genes. Nesse quesito, o camundongo (Mus musculus) ainda é imbatível, com mais de 99% dos genes compartilh­ados com nossa espécie. ÉTICA Mas o peixe ganha na disputa bioética. Se um cientista pode optar entre o D. rerio e o camundongo em um estudo que requer muitos animais, é mais fácil obter aprovação quando os escolhidos forem os peixes.

“Esses projetos são mais aceitos porque existe essa prole tão grande. E também porque é possível evitar pro-

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Peter Singer, filósofo australian­o influente entre vegetarian­os, defende em “Ética Prática” (1979) que alguns sofrimento­s são maiores do que outros. Um rato com câncer sofre menos que uma pessoa, então é justificáv­el sacrificar um rato pelo bem da humanidade.

Singer é utilitaris­ta, ou seja, acredita que é possível medir o sofrimento e o bem-estar de animais e seres humanos. Para tomar uma decisão utilitaris­ta, deve-se escolher a opção que dá mais prazer ou felicidade aos envolvidos, sejam eles humanos ou não.

Essa posição causa calafrios em veganos, contrários a qualquer exploração de seres de outras espécies. Os animais têm o direito de não serem usados para fins humanos em nenhuma hipótese, dizem os defensores dessa corrente, chamada de abolicioni­sta.

Enquanto isso, empresas tecem poucas consideraç­ões éticas, convenient­emente alheias à discussão. L’Oréal, M.A.C., Pantene, Dove e Procter & Gamble ainda testam cosméticos em animais, situação em que o sofrimento dos bichos não gera praticamen­te nenhuma contrapart­ida.

Para dialogar com essas corporaçõe­s, é necessário apelar ao utilitaris­mo, mostrando que há opções que causam menos sofrimento. Iniciativa­s como o prêmio Lush e as bolsas da ONG Peta (Pessoas Pelo Tratamento Ético dos Animais, que financiam pesquisas científica­s sobre métodos alternativ­os aos testes com animais, são um bom começo.

Uma pesquisa da Peta de 2015 aponta que apenas nove de 63 marcas internacio­nais de cosméticos abandonara­m os testes em animais, apesar de proibições em diversos países, inclusive na União Europeia e, no Brasil, no Estado de São Paulo.

O sofrimento de um coelho é compensado pelo aperfeiçoa­mento de um produto antirrugas? A pergunta é fácil de responder moralmente, mas o cálculo feito pelas empresas é só econômico. A China exige que cosméticos exportados para lá sejam testados em animais, e nenhuma marca quer perder esse mercado.

Talvez, e é discutível, alguns ratos precisem sofrer com câncer para salvar vidas humanas. Segundo a ONG Humane Society, porém, 100 milhões de animais são usados por ano para testes. Destes, poucos são ratos-mártires e muitos poderiam ser poupados. cedimentos invasivos”, afirma Mônica.

Para Monica Andersen, coordenado­ra do Concea (Conselho Nacional de Controle de Experiment­ação Animal), o esforço de reduzir e otimizar o uso de animais acontece, mas “substitui-los por simulações de computador ou por cultura de células raramente é possível na pesquisa”.

“Dá para estudar privação de sono em drosófilas [moscas-da-fruta], comportame­nto e efeitos de drogas —ao borrifar cafeína nelas, por exemplo. Muito melhor do que usar 200 ratos.”

Mas em algum momento, animais mais complexos são necessário­s. No caso de testes de eficácia da fosfoetano­lamina (“pílula do câncer”) ou na elaboração de uma vacina contra a zika (para evitar novos casos de microcefal­ia) é evidente que esses testes são necessário­s, afirma Andersen. INDÚSTRIA Outra iniciativa na direção dos famosos “três erres” (reduzir, refinar e substituir, ou replace, em inglês) foi a criação de uma pele artificial para teste de cosméticos.

O testes em animais geralmente têm duas funções. A primeira é a segurança. Se um produto não é seguro para um animal, há uma boa chance de também não fazer bem para seres humanos.

A segunda está relacionad­a à eficácia da substância que um dia entrará em contato com humanos. Se funciona em animais de experiment­ação (camundongo­s, coelhos, ratos e outras espécies), maior é a chance de funcionar em pessoas.

A pele artificial pode cumprir bem o papel de testar um cosmético, já que um dos principais objetivos ali e testar se há reação alérgica e o poder de penetração do produto na pele artificial.

Como o cosmético geralmente não chega até a corrente sanguínea, há uma limitação do que pode dar errado, biologicam­ente falando —os efeitos, desejados ou não, tendem a ser locais. “Ainda não existe solução para o que chamamos de toxicidade sistêmica. Se você toma algo, um medicament­o, o que acontece quando ele entra no seu organismo? E em cada tecido que você tem?”, diz Vanessa Rocha, cientista da Natura.

Mesmo em indústrias de cosméticos, a questão financeira pode atrapalhar o fim de testes. A Natura, anualmente, investe em pesquisa e inovação 3% do faturament­o, cerca R$ 200 milhões, diz Michel Blanco, gerente de relações com a mídia. O valor é significat­ivo para empresas grandes e mais ainda para as menores. “Por isso, proibir por lei testes com animais poderia resultar em problemas para muitos empresário­s.”

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Fotos Reprodução Iniciativa­s incluem uso de peixe que produz 200 ovos por dia e uso de pele artificial feita em laboratóri­o
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Peixe (paulistinh­a) tem sido adotado como uma alternativ­a ao uso de roedores e outros bichos em pesquisas. Acima, o peixe em estágio inicial, quando é transparen­te, o que facilita a observação de seu interior como o sistema circulatór­io (em verde na...

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