Maior parte das empresas é alheia à discussão sobre sofrimento animal
DE SÃO PAULO
Uma das críticas mais comuns (e injustas) ao uso de modelos animais para entender a fisiologia humana e testar tratamentos contra doenças é a de que sempre haverá diferenças consideráveis entre os organismos. Agora imagine se o tal organismo fosse não um roedor, mas um peixe.
Por incrível que pareça, há grandes vantagens —especialmente logísticas e financeiras— em adotar como modelo animal nossos distantes primos aquáticos.
Em comparação ao camundongo, roedor de 25 gramas que tem gestação de 21 dias que leva mais 30 até a vida adulta, o peixinho Danio rerio dá um aula de como se reproduzir de maneira eficiente.
São 200 ovos diários, contra cerca de dez a cada gestação dos camundongos. A discrepância faz com que o custo de cada indivíduo seja de R$ 0,80 —dez vezes menos do que um camundongo.
A maior vantagem dos peixinhos, relata Mônica LopesFerreira, do Instituto Butantan, é o desenvolvimento externo. Os ovos viram larva em 72h e todo o processo é literalmente transparente, o que facilita a observação de estruturas internas dos bichos.
Entre os experimentos mais populares com o D. rerio estão os de embriologia e de toxicidade de substâncias. Não há necessidade de injeções, por exemplo —basta a substância a ser testada ser diluída na água que o prejuízo no desenvolvimento pode ser observado e calculado.
O peixe também é útil, por exemplo, no estudo de algumas distrofias musculares, doenças que causam perda de função progressiva dos músculos e que podem matar antes dos 30 anos de vida.
Mônica conta que entre o Homo sapiens eo D. rerio há 70% de semelhança entre os genes. Nesse quesito, o camundongo (Mus musculus) ainda é imbatível, com mais de 99% dos genes compartilhados com nossa espécie. ÉTICA Mas o peixe ganha na disputa bioética. Se um cientista pode optar entre o D. rerio e o camundongo em um estudo que requer muitos animais, é mais fácil obter aprovação quando os escolhidos forem os peixes.
“Esses projetos são mais aceitos porque existe essa prole tão grande. E também porque é possível evitar pro-
FOLHA
Peter Singer, filósofo australiano influente entre vegetarianos, defende em “Ética Prática” (1979) que alguns sofrimentos são maiores do que outros. Um rato com câncer sofre menos que uma pessoa, então é justificável sacrificar um rato pelo bem da humanidade.
Singer é utilitarista, ou seja, acredita que é possível medir o sofrimento e o bem-estar de animais e seres humanos. Para tomar uma decisão utilitarista, deve-se escolher a opção que dá mais prazer ou felicidade aos envolvidos, sejam eles humanos ou não.
Essa posição causa calafrios em veganos, contrários a qualquer exploração de seres de outras espécies. Os animais têm o direito de não serem usados para fins humanos em nenhuma hipótese, dizem os defensores dessa corrente, chamada de abolicionista.
Enquanto isso, empresas tecem poucas considerações éticas, convenientemente alheias à discussão. L’Oréal, M.A.C., Pantene, Dove e Procter & Gamble ainda testam cosméticos em animais, situação em que o sofrimento dos bichos não gera praticamente nenhuma contrapartida.
Para dialogar com essas corporações, é necessário apelar ao utilitarismo, mostrando que há opções que causam menos sofrimento. Iniciativas como o prêmio Lush e as bolsas da ONG Peta (Pessoas Pelo Tratamento Ético dos Animais, que financiam pesquisas científicas sobre métodos alternativos aos testes com animais, são um bom começo.
Uma pesquisa da Peta de 2015 aponta que apenas nove de 63 marcas internacionais de cosméticos abandonaram os testes em animais, apesar de proibições em diversos países, inclusive na União Europeia e, no Brasil, no Estado de São Paulo.
O sofrimento de um coelho é compensado pelo aperfeiçoamento de um produto antirrugas? A pergunta é fácil de responder moralmente, mas o cálculo feito pelas empresas é só econômico. A China exige que cosméticos exportados para lá sejam testados em animais, e nenhuma marca quer perder esse mercado.
Talvez, e é discutível, alguns ratos precisem sofrer com câncer para salvar vidas humanas. Segundo a ONG Humane Society, porém, 100 milhões de animais são usados por ano para testes. Destes, poucos são ratos-mártires e muitos poderiam ser poupados. cedimentos invasivos”, afirma Mônica.
Para Monica Andersen, coordenadora do Concea (Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal), o esforço de reduzir e otimizar o uso de animais acontece, mas “substitui-los por simulações de computador ou por cultura de células raramente é possível na pesquisa”.
“Dá para estudar privação de sono em drosófilas [moscas-da-fruta], comportamento e efeitos de drogas —ao borrifar cafeína nelas, por exemplo. Muito melhor do que usar 200 ratos.”
Mas em algum momento, animais mais complexos são necessários. No caso de testes de eficácia da fosfoetanolamina (“pílula do câncer”) ou na elaboração de uma vacina contra a zika (para evitar novos casos de microcefalia) é evidente que esses testes são necessários, afirma Andersen. INDÚSTRIA Outra iniciativa na direção dos famosos “três erres” (reduzir, refinar e substituir, ou replace, em inglês) foi a criação de uma pele artificial para teste de cosméticos.
O testes em animais geralmente têm duas funções. A primeira é a segurança. Se um produto não é seguro para um animal, há uma boa chance de também não fazer bem para seres humanos.
A segunda está relacionada à eficácia da substância que um dia entrará em contato com humanos. Se funciona em animais de experimentação (camundongos, coelhos, ratos e outras espécies), maior é a chance de funcionar em pessoas.
A pele artificial pode cumprir bem o papel de testar um cosmético, já que um dos principais objetivos ali e testar se há reação alérgica e o poder de penetração do produto na pele artificial.
Como o cosmético geralmente não chega até a corrente sanguínea, há uma limitação do que pode dar errado, biologicamente falando —os efeitos, desejados ou não, tendem a ser locais. “Ainda não existe solução para o que chamamos de toxicidade sistêmica. Se você toma algo, um medicamento, o que acontece quando ele entra no seu organismo? E em cada tecido que você tem?”, diz Vanessa Rocha, cientista da Natura.
Mesmo em indústrias de cosméticos, a questão financeira pode atrapalhar o fim de testes. A Natura, anualmente, investe em pesquisa e inovação 3% do faturamento, cerca R$ 200 milhões, diz Michel Blanco, gerente de relações com a mídia. O valor é significativo para empresas grandes e mais ainda para as menores. “Por isso, proibir por lei testes com animais poderia resultar em problemas para muitos empresários.”