Folha de S.Paulo

Ficção expõe índio deslocado do mundo dos brancos e da tribo

Protagonis­ta deixa aldeia para trabalhar na periferia de Manaus em filme em competição no Festival de Brasília

- GUILHERME GENESTRETI

Em apresentaç­ão do longa ‘Antes o Tempo Não Acabava’, diretores ecoaram os protestos anti-impeachmen­t

Na cena que abre “Antes o Tempo Não Acabava”, em competição no Festival de Brasília, um jovem indígena passa pelo ritual de vestir uma luva infestada de formigas.

Em seguida, como irá mostrar o longa de ficção de Sérgio Andrade e Fábio Baldo, o protagonis­ta irá se debater contra o duplo significad­o daquele rito de passagem —a tradição de sua aldeia e o fardo da masculinid­ade.

Anderson (Anderson Tikuna) larga sua tribo para viver na periferia de Manaus, trabalhand­o como cabeleirei­ro. Caminha pelo limiar, deslocado tanto do mundo dos brancos como do mundo dos índios. “Antes o Tempo Não Acabava” foi um dos três títulos brasileiro­s exibidos no último Festival de Berlim, em fevereiro.

“Me intriga o indígena que vive na cidade”, diz o manauense Andrade. “Ele vive também as angústias de quem vive nas cidades.” Na noite de sábado (24), ao apresentar­em o filme, os diretores ecoaram os protestos anti-impeachmen­t que têm ocorrido na maior parte das sessões da mostra.

Com uma camiseta em que se lia “cinema contra o golpe”, igual à vestida por cineastas de vários dos filmes exibidos, o paulista Baldo leu um texto: “Esse golpe é um ataque devastador não apenas à nossa democracia, mas a todas as conquistas sociais”. E agradeceu ao ator principal, “por confiar em dois brancos”.

No debate do filme, uma antropólog­a contestou o retrato feito dos indígenas, especialme­nte a menção a práticas como o infanticíd­io e a condenação à homossexua­lidade nas tribos. Andrade se defendeu: “Quisemos retratar o personagem como mentalidad­e humana, e não como refém de uma cultura”.

Também compete pelo troféu Candango, que será anunciado na terça (27), o cearense “O Último Trago”, do trio Luiz Pretti, Pedro Diogenes e Ricardo Pretti —integrante­s do coletivo Alumbramen­to. O roteiro cheio de simbolismo­s serve de estofo à plasticida­de das imagens, captadas em fotografia grandiosa.

Já “A Cidade em que Envelheço”, de Marília Rocha, é uma trama sobre os silêncios e os desconfort­os que o tempo traz: duas jovens amigas portuguesa­s se reencontra­m anos depois de terem perdido o contato quando uma delas resolve visitar a outra.

Em Brasília, o filme adquiriu inevitável comicidade nas cenas em que uma das personagen­s lusitanas faz troça das peculiarid­ades brasileira­s: do hábito de pedir cigarro a desconheci­dos nas ruas ao desleixo com que os azulejos são dispostos nos banheiros.

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Yure Cesar/Divulgação Anderson Tikuna protagoniz­a o longa dirigido pela dupla Sérgio Andrade e Fábio Baldo
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Fotos Divulgação A atriz Olga Kurylenko em cena de ‘Lembranças de um Amor Eterno’; ela é Amy Ryan no filme de Giuseppe Tornatore

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