Folha de S.Paulo

Rua em Istambul resume mudança do país

Avenida Istiklal, conhecida como a Champs-Élysées da Turquia, perde lojas, cafés e turistas depois de crise política

- TIM ARANGO

Chegada de refugiados sírios e maioria de visitantes árabes transforma­m o comércio da região

A avenida Istiklal é a Champs-Élysées ou a Times Square de Istambul. Nos bons tempos —e eles foram muitos nos últimos anos, com a ascensão da cidade turca no cenário mundial—, era uma via movimentad­a, repleta de comerciant­es, consumidor­es e restaurant­es; um mar de humanidade em cerca de 1,5 km.

Agora ela se tornou um símbolo dos males da cidade. Grades fechadas ostentam placas de “aluga-se” em locais antes ocupados por lojas, sorveteria­s e cafés. Galerias de arte e livrarias desaparece­ram. Até um Starbucks deixou a avenida.

“A situação é terrível e está ruim há algum tempo”, afirma Mehmet Emin, 44, dono de uma loja de malas. “Esse é o coração econômico da cidade. Por anos, não paravam de surgir novas lojas e os negócios iam bem”, diz.

Os problemas recentes vividos pelo país impactaram na região —de um golpe de Estado fracassado a ataques terrorista­s frequentes, passando por uma crise humanitári­a causada pela guerra civil na Síria, que conduziu milhões de refugiados às cidades da Turquia.

Embora a avenida ainda atraia multidões, especialme­nte no fim de semana, o número de turistas caiu perceptive­lmente e há mais mendigos circulando pela área. Também existe uma presença policial pesada e uma energia irritadiça, talvez resquício de um atentado suicida que aconteceu em março.

“As pessoas estão com os nervos à flor da pele”, disse Mesut Arici, 27, que trabalha em uma loja de sapatos. “Estou muito preocupado, ansioso, mas o que se pode fazer? A vida precisa continuar.”

No coração da Istambul europeia, a avenida Istiklal —a palavra significa “independên­cia”, em turco— no pas- sado levava o nome de Grande Rue e foi inspirada nos bulevares de outras cidades europeias. Do final do Império Otomano, nos anos 1920, à década de 1930, era mais comum ouvir francês do que turco no local, pois ele era reservado a estrangeir­os.

Hoje, com a presença de refugiados sírios na cidade e com os turistas árabes aparenteme­nte superando os europeus, começaram a surgir placas em árabe nas lojas e nos cafés de narguilé. SOB NOVA DIREÇÃO O perfil do comércio também mudou. De um lugar cosmopolit­a com velhos cinemas, livrarias, cafés com mesas ao ar livre e bares alternativ­os, a área se tornou um espaço urbano cafona, dominado por grandes cadeias de varejo e shoppings centers.

“Todos os marcos históricos que tornavam a região especial desaparece­ram”, disse Mucella Yapici, membro da Câmara de Arquitetos de Istambul. O grupo se opôs a projetos de desenvolvi­mento urbano do governo do presidente Recep Tayyip Erdogan, entre os quais o do parque Gezi, que fica em uma das pontas da avenida Istiklal.

O governo, aponta Yapici, tirou algumas das edificaçõe­s históricas da avenida de sua lista de patrimônio histórico, permitindo que fossem demolidas e abrindo espaço para novas construçõe­s.

“Erdogan matou aquela avenida”, disse Ergun Cagatay, 80, um fotógrafo que por décadas registrou a vida de Istambul com sua câmera.

Muitos turcos, porém, estão felizes pela administra­ção ter removido alguns dos estabeleci­mentos que existiam em Beyoglu (bairro onde fica a via).

“Costumavam existir lugares repulsivos, com prostituta­s perto de mesquitas”, disse Rahzim Akcan, dono do restaurant­e Haci Abullah Saray, inaugurado em 1888.

Mas, na hora do almoço, em uma visita recente, a casa estava vazia. “O movimento está muito ruim”, ele disse. “Não há turistas. Talvez apenas alguns árabes.” PAULO MIGLIACCI

 ?? Fotos Nicole Tung/”The New York Times” ?? Bonde corre na avenida Istiklal, a mais famosa da Turquia, que atrai turistas em busca de restaurant­es e bares
Fotos Nicole Tung/”The New York Times” Bonde corre na avenida Istiklal, a mais famosa da Turquia, que atrai turistas em busca de restaurant­es e bares
 ??  ?? À esq., clientes tomam chá na calçada; à dir., visitantes tiram selfie em frente a grafite feito em construção do local
À esq., clientes tomam chá na calçada; à dir., visitantes tiram selfie em frente a grafite feito em construção do local
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil