CRÍTICA Voz e movimento não se entrosam em peça
Embora ‘Palavras Esquecidas’ enfatize trechos desconcertantes do Evangelho do Tomé, dramatização é pálida
FOLHA
Num palco deserto e às escuras, um círculo de luz se abre no centro e é percorrido pelo personagem de Antonio Interlandi. Enquanto, isso, a sensual voz em off da portuguesa Maria de Medeiros (que atuou no filme “Pulp Ficton – Tempo de Violência”, de Quentin Tarantino) recita a genealogia mítica que vai do primeiro Adão, o da queda do Paraíso, ao segundo, Jesus, que os cristãos consideram o reconciliador do céu e da terra.
Assim começa o espetáculo “Palavras Esquecidas”, solo dedicado ao “Evangelho de Tomé”, texto dos dois primeiros séculos da era cristã , mas soterrado, esquecido e só reencontrado em 1945, no Egito, entre outras escrituras chamadas de “gnósticas”.
Gnose, em grego, é conhecimento, e o adjetivo “gnóstico” se refere a um conjunto de pensadores e movimentos que a Igreja Católica condenou como heréticos, por advogarem visões estranhas como a de que o Deus bíblico é um Criador perverso, autor do Mal e nosso carcereiro metafísico (com valioso auxílio de seus sacerdotes e rituais terrenos) num mundo material de sofrimento e ilusão.
Sem chegar a tais extremos, um texto como este atribuído ao apóstolo Tomé traz, ainda assim, uma apresentação bastante heterodoxa da boa nova (sentido da palavra evangelho) de Cristo.
As 114 sentenças curtas não trazem fatos biográficos, milagres e nem mesmo um relato do drama da crucificação e ressurreição. Tampouco insistem na pregação sobre moral, castigos e arrependimentos, focando a salvação que vem do autoconhecimento.
A adaptação de Interlandi enfatiza trechos desconcertantes, inclusive aquele que parece condenar práticas como o jejum, a esmola e a re- za, ou um outro em que Cristo defende a necessidade de uma unificação pessoal para além das dicotomias tradicionais como interno e externo, e o masculino e feminino.
Uma mensagem particularmente interessante para tempos de intolerância fanática e maniqueísmo como o nosso.
São muitas as passagens que, como esta, tornaram o gnosticismo uma opção atraente na atualidade, como uma espécie de “cristianismo budista”. Tomé, de fato, teria pregado na Índia, e essa espécie de aclimatação cultural do evangelho se reflete, numa mescla com elementos afro-brasileiros, no estilo dos cânticos e danças que pontuam, ao longo do espetáculo, a rememoração ritual dessas “palavras esquecidas”.
Ator e bailarino radicado na França, Interlandi se vale com o vigor que lhe é próprio dessa mescla de linguagens.
Mas se, isoladamente interessantes, palavra, canto e movimento não parecem se entrosar num todo eficaz.
A dramatização é tão pálida que não consegue deixar claro nem mesmo o que a sinopse indica, isto é, que se vai mostrar a surpresa, perturbação e entusiasmo com que o apóstolo do “ver para crer” teria reagido ao primeiro contato com a mensagem do seu mestre “gêmeo” (como sugere a etimologia de seu nome, Dídimo Judas Tomé), talvez alter ego.
A peça desperdiça as poderosas fontes poéticas que tinha à disposição, desperdício, aliás, antecipado no uso da locução de Maria de Medeiros, na abertura, para aquele pouco criativo catálogo de nomes. QUANDO qui. e sex., às 21h; até 9/12 ONDE teatro Eva Herz - Livraria Cultura do Conjunto Nacional, av. Paulista, 2.073, tel. (11) 3170-4059 QUANTO R$ 50 CLASSIFICAÇÃO 14 anos AVALIAÇÃO regular