Folha de S.Paulo

Se não forem vendidos ou doados, livros podem virar papel higiênico

Em 2015, 57 milhões de exemplares encalharam no país, mas aparas não são fim mais comum

- MAURÍCIO MEIRELES

Tema ganhou destaque com notícia de que a Cosac Naify poderia destruir estoque não comerciali­zado

Sabe como um editor faz para se matar? Ele sobe na pilha de livros encalhados — motivo de sua terrível dor de cabeça— e pula. Pelo menos é essa a piada corrente no meio, para ilustrar o problemão que é se livrar das obras que não deram certo.

Quando nem fazer promessa para São Jerônimo, padroeiro dos editores, dá certo, uma das soluções é destruir os livros —ou “transformá-los em aparas”, eufemismo preferido pelos profission­ais do ramo.

O assunto veio à baila na semana passada, revestido de indignação com a notícia de que a Cosac Naify poderia destruir os livros de seu estoque que não fossem vendidos até o fim do ano. À Folha a editora afirmou que essa era apenas “uma das possibilid­ades”.

Pode parecer uma medida radical, mas é um caminho ao qual a maioria das editoras apela —aqui e no mundo.

A última edição da pesquisa de produção e vendas do setor, realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, mostra que, em 2015, 57 milhões dos 446 milhões de exemplares impressos no país não foram vendidos.

Em geral, o argumento dos editores é que é caro manter os livros em galpões alugados —e nem sempre promoções ou vendas a empresas de saldões acabam com o estoque. De todo modo, eles veem a medida como “a última opção”.

“É triste, num país com o baixo índice de leitura do Brasil, vender livros como aparas. É quase a mesma coisa que jogar no lixo. É o último dos recursos. No ciclo de vida de um livro, há outras opções antes”, diz Sônia Jardim, presidente da Record.

O valor das aparas é irrisório. De acordo com a Anap (Associação Nacional de Aparistas de Papel), o preço hoje está em cerca de R$ 0,60 a cada quilo. Um livro como “O Código Da Vinci” (Arqueiro), que está longe de ser um encalhe, hoje custa R$ 44,90. Transforma­do em aparas, valeria R$ 0,40.

Como em geral o mercado de aparas trabalha com toneladas, seria preciso uma pilha de 33 metros da mesma obra para atingir a cifra (de fato, um editor morre se pular dessa altura, que equivale a um prédio de 11 andares).

Uma vez picotados, é provável que os livros virem papel higiênico —e não dos bons, porque os de folha dupla preferem fibras virgens de celulose. De acordo com a Anap, 70% da produção vai para a indústria desse tipo de papel.

De todo modo, produtores de aparas consultado­s pela reportagem dizem ser raro receberem livros para destruição.

“Não temos um número, porque não é significat­ivo. A maior parte do fornecimen­to é de sobras das gráficas. E o papel do livro está em quarto lugar na escala de qualidade, por conta da tinta”, diz Pedro Vilas Bôas, consultor da Anap. DOAÇÃO Por que então não doar o encalhe para biblioteca­s? Editores em geral reclamam de precisarem arcar com a logística de uma doação —somado à crença de que biblioteca­s não têm interesse em receber centenas de exemplares de um mesmo título.

“É preciso ver os contratos [com os autores, se permitem a doação], caso a caso. Quando o autor é estrangeir­o, pior ainda. Há o frete da doação também. Doar não é uma coisa simples”, diz Luis Antonio Torelli, presidente da Câmara Brasileira do Livro.

Ele destaca ainda que já trabalhou com franquias internacio­nais de livros cujos contratos determinav­am que, quando expirassem, o estoque devia ser destruído.

“Há canais para doar o encalhe, como o Sistema Nacional de Biblioteca­s Públicas, mas os editores não costumam gostar de doar para o governo”, diz Galeno Amorim, ex-presidente da Biblioteca Nacional.

Amorim vê na rejeição em doar para o governo o medo —não infundado— de que o poder público deixe que comprar livros se passar a recebêlos de graça. Em anos bons, as compras governamen­tais chegam a representa­r um terço do faturament­o do ramo.

A destruição dos livros não é uma questão só no Brasil. A editora portuguesa Bárbara Bulhosa, da Tinta da China, diz que nunca precisou destruir seu encalhe — mas que os grandes grupos no país o fazem.

“Acabei de doar 24 mil livros para o Ministério da Cultura. Mas publico obras de referência, por isso eles quiseram”, diz Bárbara.

Para ela, a produção de encalhes numerosos está relacionad­a à concentraç­ão do mercado global em grandes grupos, com seu foco nos best-sellers —que costumam ter enormes tiragens e nem sempre são o foco das biblioteca­s públicas.

“Por isso acho um absurdo destruírem o estoque da Cosac. Eles produzem livros como nós. Exportem para Portugal, tenho certeza de que haverá quem compre.” Galpão Em tese, mesmo que encalhem, os livros ficam guardados até o fim do contrato com o autor. Editores reclamam dos custos de armazenage­m

Papel higiênico Se virar apara, o mais provável é que o livro vire papel higiênico. De acordo com dados do mercado, 70% das aparas são compradas para isso

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Zanone Fraissat/Folhapress Galpão de empresa que trabalha com aparas de papel em São Paulo

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