Folha de S.Paulo

Fora de Macondo

- DEMÉTRIO MAGNOLI COLUNISTAS DA SEMANA segunda: Celso Rocha de Barros, terça: Mario Sergio Conti, quarta: Elio Gaspari, quinta: Janio de Freitas, sexta: Reinaldo Azevedo, sábado: Demétrio Magnoli, domingo: Elio Gaspari e Janio de Freitas

MACONDO, A cidade metafórica de Gabriel Gárcia Márquez, terminou destruída por um furacão bíblico. O motivo da catástrofe derradeira é que, incapazes de suportar as incertezas do futuro, seus habitantes condenaram-se a repetir, eterna e circularme­nte, o passado. Os defensores do “não” no plebiscito colombiano sobre o acordo de paz têm razões poderosas. Contudo, só o “sim” pode romper o ciclo da reiteração, libertando a Colômbia dessa prisão chamada destino.

José Miguel Vivanco, da Human Rights Watch, e o ex-presidente colombiano Álvaro Uribe brandiram o mesmo argumento contra o acordo de paz, mas por motivos simétricos (Folha, 27/9). Vivanco acusa-o de impedir a punição de comandante­s militares e paramilita­res que cometeram violações em massa de direitos humanos —mas justifica, em nome da paz, a impunidade parcial concedida aos chefes das Farc. Uribe, por sua vez, exige sentenças de prisão contra os guerrilhei­ras —mas cala-se sobre as culpas das Forças Armadas e das milícias.

A posição de Vivanco é incoerente, ao propor que se pesem as violações em balanças distintas, e irrealista, ao sugerir que, derrotadas no campo de batalha, as Farc sejam declaradas vitoriosas no acordo de paz. Já Uribe exercita o realismo e repercute sentimento­s difundidos entre os colombiano­s, que hesitam em conceder salvo-conduto aos chefes de uma guerrilha degenerada, sanguinári­a e associada ao negócio do narcotráfi­co. Entretanto, seu horizonte é Macondo: a maldição dos Buendía.

As Farc não nasceram em 1993, quando a morte de Pablo Escobar propiciou a aliança dos guerrilhei­ros com os cartéis, nem em 1964, quando Manuel Marulanda fugiu do enclave de Marquetali­a sob ataque do Exército e, com outros comunistas, criou o bloco guerrilhei­ro precursor. De fato, as raízes da maior guerrilha colombiana encontram-se na guerra civil conhecida como La Violencia, deflagrada em 1948 pelo assassinat­o do candidato presidenci­al Jorge Eliécer Gaitán, um reformador populista do Partido Liberal.

Marulanda, nome de guerra de Pedro Marín, filho de cafeiculto­res alinhados ao Partido Liberal, cresceu nos confrontos de milícias rurais da guerra civil, combatendo com seus familiares contra forças ligadas ao Partido Conservado­r. No “Cem Anos de Solidão”, ciclos de guerras formam uma linha indiferenc­iada, afogando o presente em perpétuo passado. A década de La Violencia reproduziu as guerras crônicas do século 19 entre liberais e conservado­res, deixando 200 mil mortos. A saga das Farc inscreve-se na paisagem de uma nação cindida, anestesiad­a pela rotina do conflito. Che Guevara, o comunismo e o foquismo não passaram de temperos circunstan­ciais: tênues influência­s externas sobre a Macondo dos espectros.

As Farc irromperam como resíduo de uma guerra sem fim. Durante a degeneraçã­o da guerrilha, a Colômbia modernizou-se, abriu janelas e desafiou tradições. No governo de Uribe (2002-2010), com auxílio americano, pela via do difamado Plano Colômbia, as Forças Armadas convertera­m-se em instituiçã­o nacional, desvencilh­ando-se da companhia abominável dos paramilita­res. Ao mesmo tempo, emergiram novas correntes políticas, rompendo-se a antiga polaridade. Bogotá é governada pelo Partido Verde, que se tornou o segundo maior do país. O acordo de paz, fruto da ruptura do presidente Juan Manuel Santos com Uribe, a quem serviu como ministro da Defesa, reflete essa trajetória recente.

O princípio do extermínio governou a história da Colômbia. Todo o delicado edifício do acordo de paz ergue-se sobre a ideia de transforma­r a guerrilha em partido político, inserindo seus líderes no parlamento. Inventou-se para isso a justiça de transição, instrument­o destinado a sentenciar as violações sem trancar os violadores na prisão. É que só o pluralismo pleno, radical, pode impulsiona­r a nação para fora de Macondo.

Só o acordo de paz pode romper o ciclo da reiteração, libertando a Colômbia dessa prisão chamada destino

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