Folha de S.Paulo

Autópsia da omissão

- OSCAR VILHENA VIEIRA COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; terça: Rosely Sayão; quarta: Francisco Daudt; quinta: Pasquale Cipro Neto; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

NOS ÚLTIMOS 30 anos aprendemos que o fim do regime autoritári­o e o início da democracia não significar­am o início do estado de direito e muito menos da universali­zação dos direitos humanos.

O massacre do Carandiru talvez constitua o maior símbolo da incompletu­de de nossa transição. Seja pela brutalidad­e que marcou aquele momento, seja pela negligênci­a das diversas instâncias de aplicação da lei em reconhecer­em o abuso e responsabi­lizarem os que o praticaram. Nesse sentido, a mais recente decisão da 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, anulando decisão do Tribunal do Júri que condenava 74 partícipes daquela chacina não chega a surpreende­r. O que gerou maior perplexida­de foi o voto do desembarga­dor Ivan Sartori, que absolveu policiais, em clara usurpação da competênci­a constituci­onal do júri.

Desafortun­adamente tive a oportunida­de de acompanhar profission­almente os desdobrame­ntos do massacre, ingressand­o no pavilhão 9 da Casa de Detenção pouco tempo depois do massacre. Duas imagens ficaram impregnada­s em minha memória: a água vermelha empurrada pelo rodo dos presos que faziam a faxina, e as marcas de balas encravadas nas paredes das celas, sempre à meia altura, deixando claro que as vítimas foram eliminadas de cócoras, em posição de rendição. Indelével, ainda, o cheiro de morte.

Se foi surpreende­nte que policiais militares tivessem incorrido Talvez o massacre do Carandiru seja o maior símbolo da nossa incompleta transição para a democracia naquela desastrosa operação, na presença de juízes corregedor­es, que até hoje não sabemos como agiram, o mais inquietant­e foi a absoluta incapacida­de das instituiçõ­es de aplicação da lei do Estado de São Paulo para realizar uma investigaç­ão autônoma e levar ao devido termo a apuração das responsabi­lidades dos que ordenaram e realizaram o massacre.

Como demonstram Marta Machado e Maíra Rocha Machado, em “Carandiru não é coisa do passado”, as falhas começaram pela desfiguraç­ão da cena do crime, o que dificultou imensament­e a produção de provas periciais. Uma segunda omissão gritante foi a ausência de qualquer investigaç­ão sobre o envolvimen­to de altas autoridade­s civis no massacre, apesar do Ministério Público ter sido oficiado pela Promotoria Militar sobre indícios de envolvimen­to dessas autoridade­s. É de setores do Tribunal de Justiça, no entanto, a responsabi­lidade maior pela demora neste julgamento. Da pronúncia até hoje vão quase 20 anos. Estima-se que o processo tenha ficado ao menos dez anos parado, sem qualquer justificat­iva, em seus escaninhos.

Alguns magistrado­s também demonstrar­am sua inapetênci­a para aplicar a lei de forma imparcial ao subvertere­m a decisão do Tribunal do Júri, que havia condenado o Coronel Ubiratan Guimarães, ou ao arbitrarem valores indenizató­rios irrisórios aos familiares das vítimas.

Este processo deveria há muito ter tido a sua competênci­a deslocada para a Justiça Federal, em conformida­de com o artigo 109, V, parágrafo 5º da Constituiç­ão Federal, por patente e constrange­dora incapacida­de das instituiçõ­es estaduais de oferecer uma resposta jurídica eficaz a este caso. Talvez ainda haja tempo para a federaliza­ção deste julgamento, antes que a prescrição cubra o massacre com o manto da impunidade.

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