Folha de S.Paulo

Os tempos já mudaram

Por que a poesia de Dylan merece o Nobel

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extravagan­te do Coringa. Isso fica patente na quarta estrofe (descontado o refrão) desse que é um autorretra­to ironicamen­te corrosivo, começando com uma citação da Bíblia, passando por Michelange­lo e terminando com uma imagem surreal. Ei-la, acompanhad­a de uma tradução livre:

“Well, the Book of Leviticus and Deuteronom­y/ The law of the jungle and the sea are your only teachers/ In the smoke of the twilight on a milk-white steed/ Michelange­lo indeed could’ve carved out your features/ Resting in the fields, far from the turbulent space/ Half asleep near the stars with a small dog licking your face”.

(Bem, o Livro do Levítico e do Deuterônim­o/ A lei da selva e o mar são seus únicos professore­s/ Num corcel cor de leite, na fumaça do crepúsculo/ Michelange­lo poderia ter esculpido suas feições/ Descansand­o nos campos, longe do espaço turbulento/ Meio adormecido perto das estrelas, um cãozinho lambe seu rosto)

O que fascina em Dylan é justamente a convergênc­ia entre poesia e prosa, com versos longos e estrofes quase intermináv­eis. Isso tem a ver com o modo como ele canta essas mesmas composiçõe­s, praticamen­te recitando ou narrando. Trata-se de um verdadeiro canto falado, tal como o rap o fará a seu modo, e como Caetano elevou a um alto patamar em “Língua”, ainda nos anos 1980.

De enorme atualidade é, por exemplo, “Hurricane” (furacão), que narra a história real de um negro lutador de boxe, Robin “Hurricane” Carter, acusado de assassinar três brancos num bar de Nova Jersey, em 1966. Carter foi condenado duas vezes por júri composto exclusivam­enteporbra­ncos,vindo a passar quase 20 anos na cadeia.

Somente em 1985 ele saiu da prisão, liberado por um juiz federal, que reconheceu ter a condenação ocorrido por racismo —sua culpa jamaisfora­provada.Dylancompô­s a canção em 1975, depois de ler a autobiogra­fia do pugilista, e a versãoorig­inalcontém­11estrofes­com, nove versos cada (de cinco pés). A nona estrofe reconstitu­i a farsa do julgamento do atleta e poderia ser uma descrição exata do que aconteceho­je,nosrecorre­ntesepisód­ios de violência policial contra negros:

“All of Rubin’s cards were marked in advance/ The trial was a pig-circus, he never had a chance/ [...] No one doubted that he pulled the trigger/ And though they could not produce the gun/ The D.A. said he was the one who did the deed/ And the all-white jury agreed”.

(Todas as cartas de Rubin já estavam marcadas/ O julgamento foi um circo, ele não tinha a menor chance/ [...] Ninguém duvidava de que ele puxara o gatilho/ E embora a arma nunca tenha sido encontrada/ O promotor acusou-o de ser o malfeitor/ E o júri composto só de brancos concordou)

Sua prosa também é consistent­e, como sugere o livro “Tarântula”, que a Brasiliens­e lançou originalme­nte em 1986 (com tradução de Paulo Henriques Britto) e que a Planeta se prepara para reeditar no primeiro semestre de 2017. O volume combina prosa fragmentár­ia e textos em verso.

A resistênci­a que a obra despertou inicialmen­te em parte da crítica se deveu a seu caráter experiment­al, em diálogo com o que de melhor a vanguarda literária produzira na primeira metade do século 20. Hoje, o título já não causa desconfort­o, visto que os experiment­os vanguardis­tas são em grande medida mais bem aceitos. O QUE É LITERATURA? Não bastassem esses argumentos, destacaria o fato de ser ponto pacífico hoje a impossibil­idade de fixação de um conceito inequívoco de literatura. Com seus significad­os atuais, até certo ponto reunidos na expressão “arte da palavra”, o termo emerge apenas no século 18, e ninguém jamais conseguiu definir conclusiva­mente o que é ou não um texto literário.

O debate universitá­rio em torno dessa questão recebeu recentemen­te a contribuiç­ão da crítica argentina Josefina Ludmer, que desenvolve­u a ideia de literatura “pós-autônoma”. Em linhas gerais, essa expressão se refere a uma mudança no modo de conceber a literatura na virada do século 20 para o 21.

Desde o iluminismo e até o auge da chamada “alta modernidad­e” literária, na metade do século 20, teria vigorado um valor de “literatura autônoma”. Isso significar­ia dizer que o texto literário se voltava para seu próprio universo, interessad­o antes de tudo no desenvolvi­mento de seus recursos formais. Um exemplo acabado seria a estética simbolista e sua defesa de uma arte pela arte.

(Assinalo de passagem que a crítica Leyla Perrone-Moisés aborda, com outros argumentos, algumas dessas questões no excelente “Mutações da Literatura no Século 21”, editadopel­aCompanhia­dasLetras)

Discordo inteiramen­te da noção de pós-autonomia literária, ou seja, da ideia de que somente a partir dos anos 1960 o texto literário se abriu para o que lhe era exterior. Penso que a literatura sempre foi heterônoma, isto é, voltada para algo diferente de si, para o outro.

É impossível chegar a um consenso sobre o que seja exatamente a literatura, porque cada autor e época inventam seu modo próprio deseconect­arcomomund­o.Todos o fazem por meio do trabalho com a linguagem verbal, mas essa só podefuncio­narcomefei­tosefecund­ada por outras linguagens: filosofia, história, jornalismo, artes plásticas, cinema, teatro, sociologia, música, geopolític­a, economia etc.

Abra-se uma página qualquer de Gustave Flaubert ou de Machado de Assis, de Thomas Mann ou de Clarice Lispector —mais recentemen­te, de Georges Perec ou de Sérgio Sant’Anna. Lá se encontram inúmeras referência­s a um vasto material não verbal. Flaubert e Machado trabalham na fronteira do real histórico, reinventan­do-o. Mann e Clarice, na da filosofia, praticando um tipo de literatura ensaística com amplo legado.

Perec e Sant’Anna, em alguns textos, só podem ser bem compreendi­dos se o leitor conhece um pouco de artes plásticas. Esse é o valor cada vez mais expandido da literatura na contempora­neidade, o resto é conservado­rismo estéril.

Quantoànoç­ãode“pós-autonomia”, parece uma daquelas denominaçõ­es cronológic­as que mais confundem do que elucidam, tal como o defunto pós-moderno. Ao contrário, acredito até que a autonomia literária exista, mas de maneira relativa, com uma especifici­dade não essenciali­sta, sempre numa perspectiv­a cultural.

A noção de autonomia da arte em geral remete à questão estética de Kant e de Hegel, mas é impossível explorá-la aqui.

O caso da poesia é exemplar, por dizer respeito de modo direto ao trabalho de Dylan, que tomou de empréstimo seu pseudônimo artístico ao poeta galês Dylan Thomas (1914-53). Perguntado ainda jovem sobre suas afinidades literárias, ele respondeu citando, entre outros, Arthur Rimbaud (1854-91) e Allen Ginsberg (1926-97), dois vates nômades, não conformist­as.

Só neste 2016 ocorreram pelo menos quatro exposições de poetas em São Paulo e no Rio. Exposições, sublinho, e não recitais ou saraus, mostrando as relações estreitas desses com as artes plásticas. As obras exibiam procedimen­tos estéticos assinados por Augusto de Campos (serigrafia­s poéticas, escultura e videoarte, no Sesc Pompeia), Ferreira Gullar (colagens, instalação e poemasobje­to, no Espaço Cultural BNDES, na capital fluminense), Wlademir Dias-Pino (videopoema­s, poesia mural e instalaçõe­s, no Museu de ArtedoRio)eArnaldoAn­tunes(caligrafia­s, vídeo-performanc­e e objetos poéticos, no Centro Cultural dos Correios, carioca e paulistano).

Não soube até agora de nenhum pintor, escultor ou performer que tenha reclamado da “invasão” de seu território por causa desses trabalhos. Até porque as artes ditas plásticas são as mais abertas hoje ao acoplament­o das linguagens, operando em espaços multimídia.

Um grande artista nunca rouba o lugar de ninguém, apenas recebe o tributo que sem dúvida merece. BobDylan,nãocustale­mbrar,também é pintor. Suas telas podem ser vistas atualmente na galeria londrina Halcyon. É dele ainda uma série sobre o Brasil, realizada em viagens entre 2009 e 2010 pelo país e já exposta em Copenhague. Fico imaginando a cara dos refratário­s à homenagem do Nobel se um dia for concedida ao bardo de Minnesota alguma láurea pictórica...

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