Folha de S.Paulo

A ditadura dos economista­s

- CLÓVIS ROSSI COLUNISTAS DA SEMANA domingo: Clóvis Rossi; segunda: Hussein Kalout; quinta: Clóvis Rossi

DOIS ECONOMETRI­STAS caçavam patos. O primeiro atirou e errou por meio metro à esquerda. O segundo atirou, errou por meio metro à direita e gritou: Acertamos.

Essa piadinha antiga, ironizando a enganosa ciência de uma categoria específica de economista­s, ganhou um adendo agressivo, na forma da mais tremenda demolição de todos os macroecono­mistas.

Não se salvam ortodoxos ou heterodoxo­s, liberais ou conservado­res, nem mesmo a grife favorita dos liberais norte-americanos, o prêmio Nobel Paul Krugman.

O autor do trabalho é também economista, foi acadêmico (New York University) e não pode ser acusado de ter pertencido à equipe econômica de Dilma Rousseff ou de militar no PSOL.

Chama-se Paul Romer e é o economista-chefe do Banco Mundial. Está, portanto, no coração do establishm­ent. Por isso, ele se acha relativame­nte a salvo dos disparos dos economista­s e colunistas ortodoxos, hoje esmagadora maioria.

O título do trabalho, em circulação desde setembro, é “O problema da macroecono­mia”. Qual é o problema? Simples: segundo Romer, está tudo errado. Tão errado que o autor acha que, em vez de avançar, a macroecono­mia está regredindo. O eixo da crítica, do meu ponto de vista, é algo que Delfim Netto já escreveu, nesta mesma Folha, mais de uma vez: economia não é ciência.

Escreve Romer: “Mesmo quando funciona bem, a ciência não é perfeita. Nada que envolva gente nunca o é”. Para Romer, os macroecono­mistas transforma­ram-se em uma seita, que manifesta “desprezo por e desinteres­se em ideias, opiniões e o trabalho de especialis­tas que não são parte do grupo”.

Você, leitor, já deve ter testemunha­do esse desprezo em declaraçõe­s/artigos de membros de uma seita contra integrante­s da outra.

Deve ter, também, visto como se amparam uns nos outros, evidencian­do “um sentido de identifica­ção com o grupo semelhante à identifica­ção com fé religiosa ou plataforma política”. (Na verdade, Romer trouxe para os macroecono­mistas as caracterís­ticas apontadas em seus colegas por outro iconoclast­a, o físico Lee Smolin).

Até aí, tudo poderia ficar confinado a uma briguinha de confrarias. Acontece que uma dessas confrarias, a dos ortodoxos, tomou tal proporção que estabelece­u uma verdadeira ditadura, que “despreza a possibilid­ade de que a teoria [deles] esteja errada”, escreve Romer.

É esse sentimento totalitári­o que aparece, por exemplo, no texto de Abilio Diniz na Folha desta quarta (21), já a partir do título no resumo da capa: “Caminho trilhado hoje é o único que levará à retomada”.

Diniz pode não ser economista, mas revela plena identifica­ção religiosa com os mandamento­s da seita no poder, tal como descreve Romer. Tremo só de pensar na hipótese de que o “caminho trilhado hoje” seja o mesmo dos dois econometri­stas que caçavam patos.

Até um liberal assumido como Wolfgang Munchau, colunista do ‘Financial Times’, compra a crítica de Romer, a ponto de propor “tirar a política fiscal do piloto automático (...) e começar a fazer uma distinção entre interesses do setor financeiro e da economia em geral”.

Um colega de profissão demole suposta ciência da tribo, a que predomina no Brasil e dita os rumos atuais

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