Folha de S.Paulo

MESTRE ZWEIG

Em cartas e postais inéditos doados à Biblioteca Nacional de Israel, autor de ‘Brasil, País do Futuro’ orienta jovem amigo sobre literatura e sionismo

- DANIELA KRESCH

FOLHA,

O arquivista alemão naturaliza­do israelense Stefan Litt, da Biblioteca Nacional de Israel (BNI), em Jerusalém, checou diversas vezes a lista de cartas conhecidas do escritor austríaco Stefan Zweig (1881-1942), que viveu no Brasil entre 1940 e 1942, quando morreu, aos 60 anos.

Ao ver que o nome de Hans Rosenkranz não fazia parte do rol, entendeu que estava diante de uma rara descoberta: 26 cartas e 6 postais inéditos escritos por Zweig para o amigo há quase um século.

O tesouro desconheci­do era guardado havia décadas pela filha adotiva de Rosenkranz, Hannah Jacobson, 92.

Há seis meses, Litt recebeu um telefonema de Jacobson, moradora de um subúrbio de Tel Aviv. Ela havia decidido doar os documentos para a BNI, certa de que as cartas revelariam detalhes desconheci­dos sobre o autor de “Brasil, País do Futuro” (1941).

Ela tinha razão: os manuscrito­s revelam um Zweig empático e paternal, interessad­o em ajudar jovens aspirantes à literatura e preocupado com o futuro dos judeus na Europa pré-Holocausto nazista —a ascensão de Hitler acabaria levando ao suicídio de Zweig e sua mulher, Lotte Altmann, ambos judeus, em Petrópolis, em 1942.

“As cartas provam que Zweig tratava de maneira séria até demais os potenciais escritores que entravam em contato com ele”, explica Stefan Litt. “Já sabíamos que ele gostava de dividir sabedoria de vida e dicas literárias. Mas essas cartas foram uma surpresa porque nelas ele se abriu e trocou ideias francament­e com um estudante.”

A correspond­ência também evidencia ideias poucos conhecidas do autor. “Ele revela, nas cartas, um posicionam­ento sobre a questão do judaísmo e do sionismo, assunto do que ele não falava em público”, diz Kristina Michahelle­s, diretora da Casa Stefan Zweig, em Petrópolis, localizada na casa onde o escritor austríaco se suicidou.

A correspond­ência a Hans Rosenkranz cobre um período de 12 anos. A primeira missiva é de 1921, quando Rosenkranz, então um aspirante a escritor judeu austríaco, tinha apenas 16 anos. Zweig, aos 40, já era famoso. Ele sugeriu ao jovem, por exemplo, que visitasse outras culturas e aprendesse novos idiomas.

“Essa é a chave para a liberdade. Quem sabe, talvez, a Alemanha e a Europa se tornem tão sufocantes que o espírito da liberdade não seja capaz de respirar nelas”, previu.

O escritor austríaco também discorreu sobre o judaísmo: “O judeu precisa se orgulhar de seu judaísmo e glorificá-lo —mas, no entanto, não é apropriado se gabar das realizaçõe­s [...] de um grupo de pessoas homogêneo do qual pertence”.

Rosenkranz acabou se tornando jornalista e editor. Ainda na Alemanha, casou-se com Lily Hyman, mãe de Hannah Jacobson. Emigrou para a Palestina em 1933, onde mudou seu nome para Hai Ataron e trabalhou nos jornais israelense­s “Haaretz” e “Jerusalem Post” antes de também se suicidar, em 1956.

Zweig, que não apoiava a ideia de criação de um Estado judeu, tentou desencoraj­ar o pupilo de migrar para onde, em 1948, seria criado Israel. Paralelame­nte, no entanto, não escondeu sua admiração ao jornalista austríaco Theodor Herzl, o criador do movimento sionista.

“Nos últimos dias, tenho lido os diários de Herzl: tão incrível era a ideia, tão pura, enquanto era apenas um sonho, limpo de política e sociologia”, escreve. COFRE “Sempre há novos aspectos a descobrir. Stefan Zweig nunca morre”, diz Kristina Michahelle­s, contando que outras cartas do escritor austríaco foram encontrada­s, recentemen­te. Ela mesma, em 2010, recebeu uma carta inédita de Zweig ao ditador italiano Benito Mussolini, agradecend­o-o por sua sua “bondade” ao libertar um preso politico a pedido seu —o chamado “Caso Germani”.

Jacobson conservava as cartas de Zweig desde 1979, quando sua mãe morreu. Entre seus pertences, encontrou um envelope marrom lacrado e com apenas uma palavra escrita: “Zweig”. Ela guardou os manuscrito­s num cofre de banco.

“Há cinco anos, tentei doar os documentos, mas um trapaceiro afirmou que eles não valiam nada”, contou Hannah Jacobson à Folha em seu pequeno apartament­o. “Ele me ofereceu US$ 500 pelas cartas, o que eu achei um acinte. Certamente, ele iria vendê-las para colecionad­ores”, acredita.

Agora, Jacobson está satisfeita com o novo lar da correspond­ência. Depois de passar por uma restauraçã­o, as cartas foram catalogada­s e estão, aos poucos, sendo escaneadas para serem, finalmente, divulgadas no site da Biblioteca Nacional. Mas o público pode, já hoje, consultá-las livremente.

“Fiquei muito feliz com o destino das cartas. Minha mãe teria ficado muito orgulhosa”, diz a herdeira.

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