Folha de S.Paulo

Coleção tira mitos indígenas do nicho infantojuv­enil

- ALBERTO MUSSA

FOLHA

Por mais contraditó­ria que a afirmação possa parecer, a história da literatura é muito anterior à escrita. Tem pelo menos 200 mil anos, contemporâ­nea que é da própria espécie humana, do animal que nós somos.

A ciência costuma narrar a grande aventura da humanidade como uma saga tecnológic­a, a passagem da pedra lascada para a polida, a descoberta da metalurgia, a domesticaç­ão de plantas, a conquista da “civilizaçã­o”.

Todavia a maior invenção do homem pré-histórico, sua mais importante realização, a que estabelece­u o próprio conceito de humanidade foi o corpus mitológico.

Todas as matérias que a literatura “stricto sensu” iria desenvolve­r de uns 6.000 anos para cá já estavam na mitologia primitiva. Todos os dramas, todas as tensões, todas as inquietaçõ­es éticas e metafísica­s sobre problemas fundadores da humanidade já tinham sido exaustivam­ente examinadas pela narrativa mítica: o amor, a morte, a sexualidad­e, a vingança, a criação, o caos.

A mitologia é o gênero literário por excelência, porque conjuga o máximo de conteúdo com o mínimo de expressão. E é por essa densidade que o texto mítico constitui o mais profundo e complexo exercício de leitura.

Assim, recebe-se com entusiasmo a coleção Mundo Indígena, que reúne mitos ameríndios do Brasil, país que se notabiliza pelo desprezo a seu povo e a seu passado. São sete livros, com textos das etnias guarani-mbyá, hupda, kaxinawá e ianomâmi.

“A Terra Uma Só”, escrito por Timóteo Verá Tupã Popygua, é uma versão pessoal da belíssima narrativa guarani sobre a criação do mundo (a mesma recolhida por León Cadogan no célebre “Ayvu Rapyta”, de que também se serviu Kaká Werá Jecupé no seu “Tupã Tenondé”).

Esse livro levanta questão interessan­te relativa ao conceito de autoria: para os organizado­res, Timóteo é autor do texto de “A Terra Uma Só”, porque (apesar de similar aos mencionado­s “Tupã Tenondé” e “Ayvu Rapyta”) traz uma interpreta­ção particular da matéria tradiciona­l, fenômeno

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