Folha de S.Paulo

Sim, com certeza, mas mais no começo. As pessoas falavamque­asmulheres­deveriam

- MARIANA VERSOLATO

EDITORA-ADJUNTA DE “COTIDIANO”

Foram 15 anos de pesquisa até que o primeiro bebê nascesse de um útero transplant­ado no mundo, mas o sucesso da cirurgia também levantou críticas: por que passar por um procedimen­to arriscado como esse em vez de adotar uma criança?

A essa pergunta, a médica sueca Pernilla Dahm Kähler, da Universida­de de Gotemburgo, responde: “Damos a chance de as mulheres seguirem seu plano ‘A’ de darem à luz seus filhos. Se esse não funcionar, elas poderão aceitar sua infertilid­ade e considerar a adoção ou a barriga de aluguel, mas ninguém deve dizer a elas o que fazer.”

Pernilla e o médico Mats Brännström são os criadores da técnica que permitiu que, até agora, cinco mulheres que não tinham útero —porque nasceram assim ou porque tiveram que removêlo—engravidas­sem e tivessem filhos. O primeiro nasceu na Suécia, em 2014.

No total, 22 transplant­es foram feitos no mundo, mas nem todas engravidar­am ainda, como uma brasileira, que recebeu o órgão em setembro —ela terá que esperar pelo menos um ano para tentar engravidar. Depois que o bebê nasce, o útero é removido.

A médica veio ao Brasil para participar do Congresso Paulista de Medicina Reprodutiv­a, em São Paulo, onde conversou com a Folha. Como foi a trajetória do seu grupo de pesquisa até que o primeiro transplant­e de útero fosse feito com sucesso?

Eu era aluna de doutorado do Mats [Brännström, também criador da técnica] e, em 1998, ele se mudou para a Austrália. Lá ele conheceu uma paciente que nos deu a ideia para o projeto. Ela se chamava Angela, tinha 27 anos, havia recebido o diagnóstic­o de câncer de colo de útero e, por isso, teria que retirar o órgão. Mats disse que ela não poderia mais ter filhos, e Angela respondeu: ‘Então por que você não transplant­a um útero em mim? Eu tenho uma mãe saudável, minha irmã já teve filhos, você pode pegar o útero delas’.

Quando ele voltou para a Suécia em 99, me perguntou: ‘O que você acha de fazermos um transplant­e de útero?’ Foi aí que começamos a fazer testes com roedores, porcos, macacos e também humanos.

Foi tudo estruturad­o, organizado, seguindo padrões científico­s, sem pegar nenhum atalho, o que teria sido fácil. Como você se sentiu quando viu o primeiro bebê nascer?

Foi surreal. O bebê era tão normal e o casal estava tão feliz que a gente se perguntava: ‘Isso está mesmo acontecend­o?’ Após 15 anos de pesquisa, foi um prazer indescrití­vel.

Durante esse tempo nós nos questionáv­amos se veríamos isso acontecer. Mas, quando a paciente perfeita apareceu, nós estávamos tão preparados que pensamos ‘é agora ou nunca’. Demorou porque fomos muito cuidadosos. Vocês ouviram muitas críticas de pessoas que sugeriam outros caminhos às pacientes, como a adoção? recorrer à barriga de aluguel ou à adoção. A barriga de aluguel nem é permitida na Suécia e é muito difícil ir à Índia ou aos EUA. E agora a Índia quer proibir a prática. [O governo indiano divulgou um projeto de lei para proibir o aluguel de barrigas para gerar filhos em troca de dinheiro.]

Muitas pessoas diziam às mulheres: ‘Por que vocês não Pode tanto ser uma pessoa viva (como a mãe da receptora, que já passou pela menopausa), quanto um cadáver A recuperaçã­o demora um ano

Depois de um ano, a fertilizaç­ão in vitro pode ser tentada

Após uma ou duas gestações o órgão é removido para que a receptora possa parar de tomar os remédios contra a rejeição, evitando riscos desnecessá­rios adotam? Há tantos bebês no mundo’. Eu sempre respondia: ‘Você adotou seus filhos? Não? Então, justamente’. As mulheres têm um plano ‘A’, um plano ‘B’ e um plano ‘C’. Vamos tentar esse primeiro e, se não der certo —afinal era um experiment­o e não dava para dizer que as mulheres ficariam grávidas—, elas poderiam aceitar sua infertilid­ade e recorrer a outras opções. Nós demos a chance de as mulheres seguirem seu plano A e dar à luz seus filhos.

Dissemos para um dos casais que atendemos que o transplant­e não seria bemsucedid­o até o bebê nascer, e o marido disse que não concordava comigo. Ele disse: ‘É a primeira vez que nos sentimos como um casal normal. Mesmo que não funcione, pelo menos nos sentiremos normais por poder tentar engravidar”.

Quando você conhece o paciente, o indivíduo, você entende que não é fácil dizer ‘tem muitos riscos, desista’. Não é tão simples. Alguns casais não querem adotar e o processo de adoção também não é fácil. Eu não posso impor adoção ou barriga de aluguel a ninguém. Posso mostrar que há uma série de opções, e quem escolhe é o casal. As mulheres que fizeram o transplant­e eram saudáveis, sabiam dos riscos e mesmo assim disseram que queriam tentar. Falando em riscos, alguns transplant­es não foram bem-sucedidos, como o primeiro feito nos EUA, em Ohio. O que houve?

Foi uma infecção por fungos. Acredito que eles não tiveram sorte. Se a nossa primeira paciente tivesse tido uma infecção por fungos, nunca saberíamos o que poderia ter acontecido com todo o projeto, porque esse é um efeito grave. Tínhamos um comitê externo de ética para avaliação, e talvez eles não aprovassem outras cirurgias.

Não sei se você ouviu falar dos casos de Dallas [também nos EUA], mas eles fizeram quatro transplant­es de úteros de doadoras vivas em uma semana e três desses quatro úteros tiveram que ser removidos por causa de trombose no órgão. Só podemos especular as causas, são eles que têm que avaliar, mas essas falhas não fazem bem para o projeto. Por isso estamos começando um registro internacio­nal que deve ser obrigatóri­o. Se você fizer um transplant­e, tem que registrar o que aconteceu, se teve algum problema, se a paciente engravidou. Estamos também criando a Sociedade Internacio­nal de Transplant­e de Útero, e o primeiro encontro deve ser em setembro de 2017. Como garantir a qualidade do transplant­e?

Éprecisoes­tarprepara­do.Se você perguntar para a maioria dos cirurgiões, eles dirão que são bons, mas isso não é suficiente. Você precisa fazer testes, treinar muito e selecionar as melhores pacientes. Quais são as melhores pacientes?

Uma em cada 5 mil mulheres nasce sem útero, mas com ovários. Normalment­e elas descobrem isso quando têm 16, 17 anos, e não menstruam. Essa é a primeira indicação.

E depois tem mulheres que precisaram retirar o útero, por causa de alguma doença, como o câncer. E há ainda situações catastrófi­cas em que o útero precisa ser removido durante complicaçõ­es na cesariana. É um desastre quando a mulher acorda sem útero e sem um bebê.

“[quando o primeiro bebê nasceu, em 2014]. Ele era tão normal e o casal estava tão feliz que a gente se perguntava: ‘Isso está mesmo acontecend­o?’ Após 15 anos de pesquisa, foi um prazer indescrití­vel “nos disse: ‘É a primeira vez que nos sentimos como um casal normal. Sabemos que pode não funcionar, mas, mesmo que não funcione, pelo menos nos sentiremos normais por poder tentar’

É possível que essas indicações aumentem?

Não no momento. Foram feitos apenas 22 transplant­es no mundo. Temos que ser muito criterioso­s para selecionar os melhores casos. Se formos rigorosos e tivermos boas taxas de sucesso, será melhor para todos, porque a cirurgia, que é experiment­al, vai se consolidar.

Digo para as mulheres que hoje não são considerad­as adequadas para a cirurgia que elas devem ter paciência. Se elas forem selecionad­as apenas porque querem ter um bebê, não seria bom para elas nem para as outras pacientes. Qual é a colaboraçã­o da sua equipe com os médicos brasileiro­s?

Estamos aqui para passar nosso conhecimen­to, que não é só científico. Tem a ver com a seleção de pacientes que citei. E estamos abertos para colaboraçõ­es, para que os transplant­es sejam feitos em segurança. Não é vantajoso se um monte de gente fizer e um monte de falhas surgir.

A equipe de São Paulo foi à Suécia e fez um treinament­o com a gente, em ovelhas, e em setembro fizeram o transplant­e. Espero que outros países da América Latina também possam colaborar conosco.

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