Folha de S.Paulo

PELE DE TINTA

Formado em medicina, o artista alagoano Delson Uchôa, 60, se inspira em procedimen­tos cirúrgicos para compor suas obras, em cartaz em São Paulo e no Rio

- NAIEF HADDAD

Um dos grandes nomes da pintura brasileira contemporâ­nea, Delson Uchôa, 60, guarda uma relação curiosa com a medicina.

Formou-se na profissão pela Universida­de Federal de Alagoas, em 1981, e logo em seguida viajou para a Europa, dizendo para a família que buscaria estágio na área.

Que nada. Ao longo de um ano, trocou hospitais por museus, em Paris e noutras grandes cidades do continente.

A medicina, contudo, jamais o abandonou. Na entrevista à Folha em Maceió, onde Delson nasceu e vive, as referência­s ao corpo humano aparecem a todo instante.

Ao se referir às cores de suas obras, em geral vibrantes, cita o “vermelho arterial, que acabou de receber oxigênio”, portanto mais vivo, e o “vermelho venoso”, mais escuro, próximo da cor púrpura.

Esse diálogo entre arte e medicina não se restringe ao discurso. Está entranhado no modo como Delson cria os trabalhos, conforme se observa em obras em exposições atualmente em cartaz, “Adornos do Brasil Indígena”, no Sesc Pinheiros, em São Paulo, e “A Cor do Brasil”, no MAR (Museu de Arte do Rio).

Para compor boa parte de suas telas, ele despeja galões de resina no piso dos cômodos da sua casa-ateliê, na capital alagoana.

Depois que a substância seca, Delson costuma fazer as primeiras intervençõ­es, com tinta. A partir daí, deixa que o chão de resina sofra a ação do tempo, como o acúmulo de poeira.

Passados alguns meses, o artista e seus assistente­s retiram do piso o que ele chama de “pele” e a levam para outros espaços do ateliê, onde passará por novas intervençõ­es —em geral, seus trabalhos não ficam prontos antes de um ano de maturação.

Ele diz “apresentar o corpo médico ao corpo da pintura” e descreve a prática acima descrita como um “processo cirúrgico”.

“Descolo as peles de tinta e construo o trabalho por meio de implantes, enxertos, suturas”, afirma Delson. “Faço um transplant­e ao arrancar a pele de um lugar para colocá-la em outro.” ESTRIDÊNCI­A Não se apreende de modo pleno a produção artística de Delson Uchôa sem considerar a sua vida em Alagoas.

Durante a visita da reportagem ao seu ateliê, a poucos metros da praia de Ipioca, ao norte de Maceió, Delson demonstra entusiasmo ao falar sobre as caracterís­ticas climáticas e culturais da região.

“O ponto alto da minha identidade com Alagoas é a luz”, conta o artista.

“Setembro”, um dos seus seis trabalhos apresentad­os na 53ª Bienal de Veneza, em 2009, e “Entre o Céu e a Terra”, hoje em Inhotim, evidenciam essa luminosida­de em vias de atingir a saturação.

A “estridênci­a luminosa”, no dizer de Delson, não é apenas inspiração. O clima age diretament­e sobre as suas obras, moldando-as.

Nos primeiros pavimentos do ateliê, onde o artista mora, telas penduradas por fios (como na foto no alto desta página) ou estendidas sobre mesas estão sujeitas às ações do sol, da chuva, do vento.

A casa de Ipioca, aliás, vive em sua totalidade como um “work in progress”. Trabalhos povoam todos os cômodos, inclusive a cozinha.

Em comum, eles têm as grandes dimensões. Diferem, contudo, nos materiais com os quais são elaborados: além da resina, lona, linho, couro, cobertor, poliéster...

Livros também se espalham pelos ambientes. Nenhum deles causou em Del- son tamanho impacto quanto “Finnegans Wake” (1939), último romance de James Joyce.

“Aprendi que poderia expressar nas artes plásticas a liberdade total que Joyce levou à literatura”, diz. OITICICA E CLARK Entre os artistas que Delson aponta como referência­s, estão o uruguaio Torres García (1874-1949) e os brasileiro­s Volpi (1896-1988), Hélio Oiticica (1937-1980) e Lygia Clark (1920-1988).

Esses dois últimos, aliás, aparecem em comentário de Paulo Herkenhoff, um dos curadores de “A Cor do Brasil”, exposição do MAR, no Rio, que inclui trabalho do alagoano. É uma obra formada por lâminas de pintura, que podem ser manuseadas.

“‘Muxarabie’ [nome da obra de Delson] evoca a cultura moura, o Bispo do Rosário do ‘Manto’ e o Hélio Oiticica dos ‘Penetrávei­s’ e ‘Parangolés’. Como o abrigo poético de Lygia Clark, ‘Muxarabie’, a pintura folheada, acolhe o espectador”, escreve.

Em 2017, em data ainda a ser definida, obras de Delson estarão em outra mostra sob curadoria de Herkenhoff, esta em São Paulo. Será “Acervo 30 Anos”, com destaques da coleção do Itaú Cultural.

Em março, no Sesc Belenzinho, também na capital paulista, Delson estará na Bienal Naïfs do Brasil.

“Eu me sinto à vontade na arte naïf, na arte indígena ou em um contexto de erudição. Gosto desse hibridismo. Somos mestiços, afinal.”

NAIEF HADDAD

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Telas no ateliê de Delson Uchôa, em Maceió

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