Folha de S.Paulo

Um ano para ser esquecido

- JOSÉ EDUARDO CARDOZO

“Esquecer é uma necessidad­e. A vida é uma lousa, em que o destino, para escrever um novo caso, precisa apagar o caso escrito”, afirmou Machado de Assis.

O ano de 2016 deve ser esquecido, para que outros sejam escritos. Não pelas crises econômica e política que vivemos. Elas não foram uma novidade. Basta ter tempo de vida ou cultura histórica para saber disso. Não nasceram neste ano e nem nele terminarão.

Analistas preveem um agravament­o da crise econômica em 2017. Os fatos também apontam para um recrudesci­mento da crise política. A anorexia ética do governo Temer, seu descrédito popular e o nascimento de um agudo conflito entre os Poderes do Estado desenham cenários futuros desalentad­ores.

O trágico legado de 2016 também não está nas denúncias de corrupção. Por mais que vituperem os moralistas de ocasião, a corrupção não é algo recente. Sua dimensão é endêmica desde a nossa colonizaçã­o.

A diferença é que, há mais de uma década, foram sendo criadas as condições para que corruptos e corruptore­s possam ser punidos. O fedor advindo da velha realidade passou a ser sentido por todos.

Então, o que em 2016 deve ser apagadodal­ousada história?Creio que seja o rasgar das páginas da nossa Constituiç­ão que assegurava­m a existência de um Estado democrátic­o de Direito. Nele, todo poder deveria ter sido exercido dentro dos limites da lei, pouco importando a nobreza de propósitos ou clamores do senso comum.

Todo homem que tem o poder tende a dele abusar, disse Montesquie­u, e o Estado de Direito nasceu para pôr freio a isso. Nasceu para fazer respeitar direitos e dizer “não” ao arbítrio.

Em 2016, violentamo­s o nosso Estado de Direito e rasgamos a nossa Constituiç­ão, a partir de tramas oportunist­as que não aceitavam os resultados das urnas de 2014. Ou ainda pela visão equivocada dos que supõem que “violações constituci­onais” não fazem mal, se voltadas para “bons propósitos”, como combater a corrupção.

Enganaram-se. Primeiro, porque não se violenta mandatos populares impunement­e. Destituir uma presidenta eleita, invocando-se atos que sempre foram considerad­os legais e praticados por governos anteriores, chegou à beira do ridículo.

Com isso se atingiu a credibilid­ade das instituiçõ­es e se inaugurou um período de ausência de limites para os Poderes. Se uma presidenta da República pode perder seu mandato desse modo, ninguém está obrigado a respeitar mais nada. Instaurou-se o “vale-tudo” institucio­nal.

Segundo, porque embora a corrupção deva ser combatida com vigor, isso deve se dar sempre dentro da lei. O arbítrio foi e sempre será uma fonte de instabilid­ade e inseguranç­a. Se a ninguém é dado o direito de se acumplicia­r para obstar “a sangria da classe política brasileira”, ninguém também foi investido de poderes para criar “estados de exceção”.

O resultado está hoje escrito na lousa da história. Rompemos o Estado de Direito, violamos a democracia. Criamos, com isso, um descrédito institucio­nal, um acirrament­o de conflitos e tiramos a intolerânc­ia do armário.

De país pujante e estável nos tornamos, novamente, uma “república das bananas”, onde o pastelão substituiu a Constituiç­ão.

Não soubemos punir corruptos, garantindo a sobrevivên­cia de empresas e minimizand­o prejuízos para a economia, como se faz em todo o mundo. Ignoramos as causas profundas que geram a corrupção, mantendo intocado nosso anacrônico sistema político.

Há, pois, que se esquecer 2016. Há que se escrever de novo, na lousa, sobre o Estado democrátic­o de Direito. Para que agora o que for escrito não seja nunca mais apagado. JOSÉ EDUARDO CARDOZO

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