Folha de S.Paulo

Fascista de bermuda

- DEMÉTRIO MAGNOLI COLUNISTAS DA SEMANA segunda: Celso Rocha de Barros, terça: Mario Sergio Conti, quarta: Elio Gaspari, quinta: Janio de Freitas, sexta: Reinaldo Azevedo, sábado: Demétrio Magnoli, domingo: Elio Gaspari e Janio de Freitas

“UM LIBERAL não passa de um fascista em férias.” O Ênio, um pitoresco colega de faculdade, acreditava mesmo na sua boutade, cunhada há 40 anos. Lembrei dele, e dela, nesses dias de “transição trumpiana”. Nos EUA, usa-se a palavra “conservado­r” para o que chamamos “liberal” (pois, por lá, “liberal” é algo mais ou menos próximo de um social-democrata). Os liberais (“conservado­res”) americanos saltam às dúzias no barco de Trump, ainda que subsistam bolsões de resistênci­a, como McCain e os Bush, no establishm­ent republican­o, e a revista Commentary, na franja ideológica do movimento conservado­r. A adesão em massa indica que o maior derrotado no 9/11 não foi o Partido Democrata, mas o pensamento liberal americano.

Trump obviamente não é um fascista (mesmo Marine Le Pen não o é), porém representa o que de mais próximo do fascismo foi produzido pela história americana. O presidente eleito está tão distante do credo liberal quanto a Lua da Terra. O conflito estende-se pelos domínios da política, da cultura e da economia. Trump é nacionalis­ta; os liberais, internacio­nalistas. Trump é nativista; os liberais, cosmopolit­as. Trump é protecioni­sta; os liberais, livre-cambistas.

Que liberais são esses dispostos a abraçar um líder que promete destruir os acordos de livre comércio dos EUA e cercar a economia do país com uma muralha chinesa de taxas aduaneiras? Com que cara admitem a hipótese de expulsão de 11 milhões de imigrantes, cujo pressupost­o seria a edificação de uma máquina estatal de deportação de natureza totalitári­a? Seduzidos por Trump, os liberais americanos já estão prontos para seguir seu improvável líder, cortejando antilibera­is como o britânico Farage, a francesa Le Pen e o russo Putin?

Nos anos Obama, sob a inspiração dos radicais do Tea Party, os republican­os começaram a fazer experiênci­as antilibera­is, divertindo­se no pátio do nativismo e da xenofobia. Trump não é um raio no céu claro, mas um fruto inesperado desses desvios. Contudo, seu triunfo tem consequênc­ias: o partido dos liberais foi sequestrad­o pela “alt-right”, uma sombria “direita alternativ­a” que singra nas águas do neonaciona­lismo e do populismo econômico. Os liberais americanos sempre alertaram para o perigo do abuso de poder estatal; hoje, silenciam diante da tragédia de Aleppo. Esses liberais sempre pregaram o equilíbrio fiscal; hoje, adulam o magnata dos negócios suspeitos que anuncia uma torrente de gastos públicos e a expansão descontrol­ada dos deficits orçamentár­ios. Para ganhar acesso à Casa Branca, deixam na porta a bagagem de suas crenças.

Os nomeados de Trump, um círculo de extremista­s antilibera­is, dão uma ideia dos rumos de seu governo. Steve Bannon, estrategis­ta-chefe, é o editor do Breitbart News, o site oficioso da “alt-right”, navegado por supremacis­tas brancos e repleto de proclamaçõ­es islamofóbi­cas. Mike Flynt, assessor de Segurança Nacional, é o general aposentado que sentou-se ao lado de Putin, em Moscou, depois de proferir um discurso no qual pediu a prisão de Hillary Clinton e qualificou Obama como um “mentiroso”. David Friedman, embaixador em Israel, é um fervente adversário da partição da Palestina em dois Estados, a linha política oficial, compartilh­ada por democratas e republican­os, cuja fonte encontra-se no princípio da autodeterm­inação dos povos. Wilbur Ross, secretário de Comércio, é o autor da frase “livre comércio é como almoço grátis; não existe almoço grátis”.

Na campanha, Trump pregou o uso da tortura contra suspeitos e terrorismo e, depois de eleito, sugeriu casualment­e que o assassinat­o de familiares de terrorista­s seria uma tática adequada na “guerra ao terror”. Não concordei, e ainda não concordo, com o Ênio do passado distante. Mas os liberais americanos —e uns tolos brasileiro­s que os mimetizam— empenham-se em dar-lhe razão.

Trump não é um raio no céu claro, mas um fruto inesperado dos desvios dos liberais americanos

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