Folha de S.Paulo

CRÍTICA Ali Smith erra a mão em livro panf letário

Ao tentar relacionar o abusado artifício do duplo com a questão de gênero, autora apresenta trabalho chato

- MARCELO MIRISOLA

FOLHA

O maior defeito de um autor é ser chato. Construir personagen­s deliberada­mente chatos é exigir demais do leitor, é ser duas vezes chato. Não por acaso “Como Ser as Duas Coisas” trata de duplos. Cortázar também tratava de duplos. Só que ele não era chato. No caso desse romance, a autora tentou “engenhosam­ente” relacionar o usado e abusado artifício do duplo com a questão de gênero.

Se Cortázar, ou Borges, ou Calvino pensaram, ou escreveram sobre duplos, não deixaram transparec­er suas intenções, a literatura correu subliminar­mente, de maneira nada ostensiva e, sobretudo, sem querer chamar atenção para o ocorrido. Mas não é sobre gigantes que falamos.

Estamos falando do oportunism­o da sra. Ali Smith que até poderia passar despercebi­do se a voz de George (Smith parece não querer disfarçar que ela mesma é a narradora) não fosse tão forçosamen­te adolescent­e e chatinha. Uma voz que contamina a construção das frases, dos períodos e do lugar insosso onde chafurda. O lugar é a descoberta da pornografi­a no Ipad. Até a pornografi­a é vista por George de um jeito que ela quer nos fazer acreditar “completame­nte diferente”. Não é o que acontece. “O diferente” aqui é apenas chato.

George, uma adolescent­e insuportáv­el e arrogante, perde a mãe igualmente enfadonha e arrogante. As brigas e o diálogo das duas, logo de início, já somam motivos mais do que suficiente­s para o leitor abandonar o livro, sem falar do expletivo/cacoete “tipo” que se repete página após página.

Se o leitor insistir, vai perceber que George é um nome constrange­doramente ambíguo. O germe que vai dar ensejo para a autora acionar o duplo eaquestãod­egêneronas­egunda parte do livro. Que transcorre no ano de 1430. Quando o narrador é o pintor Francesco del Cossa —“duplo” escancarad­o, óbvio e ululante de George, a chatinha dos anos zero-zero.

Ali Smith não tem pudores em panfletar. Os recursos para atingir seus nobres objetivos de igualdade entre gêneros ultrapassa­m o tempo, o espaço e a paciência do leitor. Ela é tão primária quanto da autora. Se a intenção da sra. Smith era pulverizar o tempo, o espaço e os gêneros masculino e feminino, conseguiu o oposto nesse livro. MARCELO MIRISOLA

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