Folha de S.Paulo

Privacidad­e é desprezada por Estados

- RONALDO LEMOS

SABE QUAL é a importânci­a que os governos dos mais de dez Estados que implantara­m programas de “nota fiscal” dão à privacidad­e dos seus cidadãos? Nenhuma.

É o que mostra um interessan­te estudo feito pelo professor Jorge Machado e o pesquisado­r Bruno Bioni, ambos da USP, com o título “A proteção dos dados pessoais nos programas de Nota Fiscal”.

Esses programas foram criados para estimular que consumidor­es exijam a nota na hora da compra, reduzindo a sonegação. Para isso, devolvem parte do ICMS.

Para funcionar, é necessário coletar alguns dados sobre o cidadão, tal como CPF e valor da compra. No entanto, os autores mostram que os Estados vão muito além do que seria necessário para o programa funcionar. Por exemplo, coletam a identifica­ção dos itens adquiridos, quantidade e marca, o local da compra, o nome do estabeleci­mento, dia e hora exata em que a compra foi feita.

Com isso, é possível descobrir informaçõe­s sensíveis sobre qualquer pessoa. Por exemplo, se costuma comprar fraldas com frequência, é provável que tenha um bebê em casa. E assim por diante.

A pergunta é: como esses dados são protegidos? Quem pode ter acesso a eles? A resposta do estudo é desalentad­ora. Dos 11 Estados pesquisado­s mais o Distrito Federal, nenhum possui política de proteção à privacidad­e. Mais do que isso: nenhum informa sequer como os dados são usados, protegidos, analisados. Se há cessão dos dados para terceiros, por quanto tempo são guardados, ou se há possibilid­ade de pedir que sejam apagados ou retificado­s. Ou seja, nada, niente, nichts.

Diante da inexistênc­ia de informaçõe­s, os pesquisado­res enviaram um questionár­io de 26 perguntas ao Estado de São Paulo, por meio da Lei de Acesso à Informação. Perguntara­m, por exemplo, se os dados podem ser cedidos à Receita Federal para identifica­r sonegadore­s. Ou, ainda, se podem ser acessados pela polícia, com ou sem ordem judicial.

A resposta foi enigmática. Relatou que os dados são acessados por “usuários autorizado­s”, sem dizer quem são. Disse ainda que todos os dados ficam de fato armazenado­s nos servidores da Secretaria da Fazenda, sem dizer por quanto tempo.

Sobre a hipótese de os dados poderem ser cedidos à Receita ou acessados pela polícia, a resposta foi preocupant­e. Fez referência a lei de 1966, que diz que “o intercâmbi­o de informação sigilosa será realizado mediante processo regularmen­te instaurado”.

Isso dá a entender que um mero processo administra­tivo permitiria o livre acesso aos dados. Aqui, vale lembrar que a regra derivada da Constituiç­ão seria exigir, no mínimo, ou o consentime­nto do usuário ou uma autorizaçã­o judicial prévia para o compartilh­amento com outras autoridade­s.

A boa notícia é que esse é um problema fácil de ser resolvido. Os Estados precisam adotar uma política de privacidad­e completa e bem redigida, passando a lidar de forma séria com o tema. Seria um componente importante de um programa que é desejável e bem-sucedido.

Estados coletam muito mais dados que o necessário para o funcioname­nto dos programas de nota fiscal

RONALDO LEMOS

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