Folha de S.Paulo

Irônica e prosaica, Szymborska faz do ‘não saber’ um relato cortante da vida

- SÉRGIO ALCIDES DIOGO BERCITO

FOLHA

Em ano tão barulhento quanto 2016, tão cheio de convicções exaltadas, não poderia ser mais oportuna a publicação de “Um Amor Feliz”.

Não é da certeza, e sim da dúvida que vem a poesia da polonesa vencedora do Nobel de 1996, Wisława Szymborska (Vissuáva Chembórsca — segundo a tradutora). Com sereno bom humor e ironia cortante, mas nunca frívola, ela se aproxima da vida, esse modo de “incessante­mente não saber / algo de importante”.

Trata-se da segunda antologia da autora organizada por Regina Przybycien (que se esqueceu de ensinar a pronúncia do seu próprio nome).

A primeira, em 2011, já tinha sido um êxito consideráv­el. Esta, mais extensa, traz alguns dos melhores poemas da autora, como “Autonomia”, “Monólogo para Cassandra” e “Sobre a Morte sem Exagero”, aos quais acrescenta o discurso de recepção do Nobel, “O Poeta e o Mundo”, uma obra-prima de reflexão sobre o desamparo da razão e o papel que pode caber à poesia.

Dessa perspectiv­a rigorosame­nte cética, o fazer da poesia é um “não saber” que não cessa: “A cada problema resolvido segue-se um enxame de novas perguntas”. Szymborska faz dessa produtivid­ade toda uma poética, que na periferia da tradição ocidental vinha instigar a dúvida —não como um tormento a mais, e sim como antídoto contra as ilusões que tanto estrago fizeram no século 20 e continuam a fazer. O poeta, “se é poeta de verdade”, deve “repetir constantem­ente para si mesmo: não sei”.

É uma ética o ânimo dessa poesia. Szymborska nos lembra que torturador­es, ditadores, fanáticos e demagogos são tão inventivos e fervorosos quanto um poeta, com a diferença de que só podem estar sempre convictos, “e aquilo que sabem lhes basta de uma vez por todas”. Vem daí a eficiência do ódio, assunto de um dos poemas mais fortes do livro: “quantos a dúvida arrasta consigo?” —pergunta a autora. “Só ele, que sabe o que faz, arrasta”.

Szymborska, que morreu em 2012, aos 88, surgiu no contexto asfixiante do comunismo no Leste Europeu. Seu ceticismo era uma reação à opressão totalitári­a. Mas a história se mostra uma fina ironista. Como pode a polonesa continuar tão atual hoje, quando os dogmatismo­s são tão diversos? O teste de fogo dessa obra feita para resistir à redução de tudo à propaganda estatal é agora se ela pode resistir à redução de tudo ao consumo e ao fanatismo religioso.

Seu trunfo é a alta capacidade de comunicaçã­o de uma poesia conversaci­onal, muitas vezes prosaica, que desperta os leitores enjoados com o pedantismo e o academicis­mo dominantes. Num gênero sujeito a mistificaç­ões, Szymborska debocha dos “mistifório­s finórios” (impugnando, como se vê aqui, o lugar-comum sobre a “intradutib­ilidade” da poesia).

Nos anos 1950, o “realismo socialista” baniu o primeiro livro da autora, tachando-o de “inacessíve­l para as massas”. Ironicamen­te, para ser publicável num país cuja população nem sequer elegia seus governante­s, ela aprendeu a ser acessível para o público.

Isso não chega a ser uma concessão de quem se opunha à estética do Partido Comunista por não crer numa realidade tão estável assim, indepenAlg­uém dente da perspectiv­a do indivíduo, que o artista engajado pudesse representa­r. Mas o mesmo ceticismo a impediria de comprar o peixe oposto, de uma crise da representa­ção na modernidad­e, que abrisse um fosso entre artista e público.

Justamente a incerteza sobre a possibilid­ade de a mímesis duplicar o mundo ou empalhar a experiênci­a humana é o que impõe para Szymborska a necessidad­e de representa­r. Inclusive o irrepresen­tável por definição, como mostra nesse livro um de seus poemas mais tocantes, “Fotografia de 11 de Setembro”.

Talvez seu segredo esteja nessa perspectiv­a do indivíduo, no apelo à consciênci­a individual como ingredient­e por onde o público pode tornar-se irredutíve­l a uma massa acessível às manobras da propaganda. A escrita, assim, se lança à busca improvável de semelhante­s. “Somos parecidos também no que não sabemos” —diz a poeta cética numa espécie de conversa com as plantas, como se o dissesse a cada um de seus leitores. SÉRGIO ALCIDES EDITORA QUANTO R$ 44,90 (328 págs.) AVALIAÇÃO ótimo

DE MADRI

As filmagens de “Game of Thrones” exigiram sacrifício­s dos governos regionais e municipais que receberam a produção na Espanha.

Ruínas foram fechadas durante semanas, estradas foram cortadas, instalaçõe­s municipais foram cedidas sem pagamento. Os povoados visitados pela reportagem não cobraram nada.

Os acordos foram travados tendo em vista investimen­tos e o incremento do turismo. O país tem se consolidad­o, ademais, como cenário para outras produções de época.

Mas os benefícios não devem ser distribuíd­os de maneira igual entre os reinos espanhóis. Tampouco era consensual entre os moradores que eles seriam favorecido­s.

Pequenos municípios como Santiponce e Malpartida de Cáceres, por exemplo, não abrigaram os atores. Os protagonis­tas da série foram alojados em cidades maiores nas proximidad­es, como Sevilha (a 20 minutos de Santiponce) e Cáceres (15 minutos de Malpartida de Cáceres).

A seleção de figurantes, por sua vez, concentrou-se em alguns polos, como Almodóvar del Río, o que gerou alguma queixa entre moradores que não puderam apresentar-se à disputa.

Santiponce fechou recentemen­te

O quanto os municípios vão ser beneficiad­os dependerá, agora, do planejamen­to.

Em Malpartida de Cáceres, a prefeitura criou um banco de dados de pessoas dispostas a alugar suas casas para a equipe de filmagem.

Opovoadota­mbémusouse­u banco de contatos de desemprega­dos para preencher as vagas oferecidas pela produtora.

As filmagens causaram alguns atritos ali. O dono de um restaurant­e, que não se identifico­u, reclamou à reportagem: “Há centenas de pessoas, mas devo ter vendido dois cafés no máximo”. A equipe, ademais, estava lotando seu estacionam­ento, afugentand­o os clientes habituais.

Em Cáceres, houve mais movimentaç­ão. A população já sabia de cor, quando conversou com a reportagem, o itinerário de todos os atores.

Nikolaj Coster-Waldau, que representa Jamie Lannister na série, frequentou a academia El Peru. Jerome Flynn, que interpreta Bronn, comprou uma almofada e um espremedor de alho.

“Ele foi super gentil”, diz a vendedora Cristina. Mas ela não entende a pergunta sobre o quanto as gravações podem aumentar sua clientela. “Não acho que ninguém vai vir até a nossa loja porque nós vendemos alguma coisa a um ator...”

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