Folha de S.Paulo

‘Filhos da Pátria’ leva estilo Monty Phyton à TV Globo

Seriado cômico de Bruno Mazzeo investiga as raízes da corrupção no Brasil

- GABRIELA SÁ PESSOA

Prevista para estrear no segundo semestre de 2017, produção retrata a história sob o ponto de vista de pessoas comuns

Antes de a diretora Joana Jabace ordenar “ação” no set da série “Filhos da Pátria”, uma produtora circula pelo cenário —uma reprodução do Rio do século 19 na cidade cenográfic­a da Globo—, checando que nada ali esteja fora de época.

Ela se certifica de que todos os intérprete­s de escravos estejam descalços, pede que um figurante retire os óculos com armação de acrílico, avisa a um colega que cuide de um gerador à vista, que é prontament­e coberto com um cesto de vime.

Já o tema das piadas de “Filhos da Pátria” —a corrupção— cai bem hoje ou em 1822, ano em que a série se desenrola. E provavelme­nte estará funcionand­o no segundo semestre de 2017, quando a produção for ao ar: uma sátira da vocação do brasileiro para tirar vantagem de tudo, sem época ou partido político.

O criador da história, Bruno Mazzeo, retorna ao nascimento da nação —precisamen­te, 8 de setembro de 1822, dia seguinte à Independên­cia— em busca de semelhança­s entre a elite que então nascia, tomando privilégio­s da administra­ção pública, e os atuais donos do poder.

Como fez o grupo de comédia britânico Monty Phyton em filmes como “A Vida de Brian”, o ponto de vista da série não é o dos personagen­s históricos, mas o dos escravos e o das famílias da incipiente classe média daquela época.

“Não falamos disso [os bastidores históricos], mas sobre o comportame­nto. Quisemos ficar com o olhar do povo, para quem o que realmente importa é se o preço do feijão subiu. A política é forte na série”, afirma Mazzeo.

Para o autor, a personagem mais interessan­te de “Filhos da Pátria” não dorme na casa grande com os senhores vividos por Alexandre Nero e Fernanda Torres. Mas na senzala: “A heroína é a Lucélia, escrava, [personagem] da Jéssica Ellen. Ela tem o olhar crítico. Quer a liberdade não escondida no quilombo, mas inserida na sociedade”.

Fernanda Torres é Maria Tereza, uma mulher interessei­ra, casada com um oficial da corte (Alexandre Nero). Ela provoca o marido a tirar vantagens como chefe da correspond­ência entre Brasil e Portugal. Ao ver que o cônjuge, antes honesto, deu o seu jeitinho, o recompensa na cama.

O texto não poupa os personagen­s de dizer absurdos racistas, no contexto daquela época. Maria Tereza, em um episódio, fala que não trata seus escravos como animais, mas como escravos.

Fernanda vê “Filhos da Pátria” como “uma prima” de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, romance de Machado de Assis de 1881. Mais do que as semelhança­s com Monty Phyton, referência universal no humor, segunda ela.

“Em ‘Brás Cubas’, Machado também vestiu a pele da elite para denunciá-la, em um espelho mordaz”, diz a atriz, minutos antes de se caracteriz­ar como a interessei­ra Maria Tereza. Estivesse viva atualmente, a personagem seria “uma coxona”, ironiza, aludindo aos “coxinhas”. CRONISTAS “Filhos da Pátria” parece ser uma comédia atemporal. No entanto, corre o risco de estrear datada, ou mesmo superada pelos acontecime­ntos deste ano até a estreia.

A Globo exibiu um trecho da produção no início de dezembro, em um painel no festival de cultura pop Comic Con Experience.

O auditório, lotado, gargalhou quando um personagem, contrário ao reinado de D. Pedro 1º, dizia: “primeirame­nte, fora Pedro”. A frase ressoa o “primeirame­nte, fora Temer”, expressão popular entre quem se opõe ao impeachmen­t de Dilma Rousseff.

Outra cena do trailer mostrava um grupo de rebeldes, onde se ouvia algo como “primeiro a gente tira o que está aí, depois tira o resto” —uma frase pinçada das manifestaç­ões contra o governo do PT.

“Gostaria muito [que estreasse agora], a série tem urgência, sim. Acho que o humor é uma arma da sociedade —aprendi isso com o meu pai [Chico Anysio]. Ele sempre falava: ‘O humor não tem o poder de consertar nada, mas o dever de denunciar tudo”, diz Mazzeo.

Oficialmen­te, a emissora confirma a série para o segun- do semestre, provavelme­nte em setembro.

“Filhos da Pátria” foi escrita ao longo de dois anos por Mazzeo, que escalou para a equipe de roteirista­s dois cronistas, Antonio Prata e Tati Bernardi —ambos colunistas da Folha, assim como Fernanda Torres.

Uma brecha entre duas produções históricas na Globo ajudou financeira­mente “Filhos da Pátria” a pular do papel para a tela.

A cenografia reaproveit­ou a paisagem histórica criada para “Liberdade, Liberdade”, novela na época da Inconfidên­cia Mineira, exibida em 2016. E preparou o terreno para “Novo Mundo” —o folhetim das 18h sobre o Rio de D. João 6º estreia já em março, mas só começou a ser rodado assim que as filmagens da série cômica terminaram.

Se o passado em “Novo Mundo” é fantástico, com mocinhas e piratas, ao revisitá-lo em “Filhos da Pátria”, Mazzeo espera fazer as pessoas pensarem sobre o presente do país.

“A política é um expoente enorme desse jeitinho brasileiro. Mas não começou agora, no governo do PT ou no de FHC. A conta que chega é fruto da nossa história”, ele diz.

Tanto é que Mazzeo espera escrever novas temporadas do seriado em outras épocas: “Ainda não acertamos nada com a Globo, mas nossa ideia é que seja um ‘Filhos da Pátria’ em mais um período de recomeço do Brasil, como a Era Vargas, a abolição da escravidão, a ditadura...”.

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Estevam Avellar/Divulgação Os atores Jéssica Ellen (Lucélia), Fernanda Torres (Maria Tereza) e Alexandre Nero (Geraldo), em cena da minissérie
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Divulgação O intelectua­l britânico John Berger, morto aos 90 anos

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