Folha de S.Paulo

Mesentério, estrutura ligada ao intestino, ganha status de órgão

Tecido fibroso que ancora vasos e intestino teve anatomia bem definida, mas função ainda não

- GABRIEL ALVES

Para médico, mudança aconteceu por causa do aumento de cirurgias bariátrica­s e do maior interesse pela região

Não que ele fosse um total desconheci­do, mas o mesentério, estrutura responsáve­l por manter o intestino ligado ao corpo, nunca esteve em alta. Agora, porém, ele foi promovido a órgão e está na mesma categoria que o coração e a tireoide, por exemplo.

A proposta de troca de status é o resultado do esforço de pesquisa do cirurgião John Coffey, da Universida­de de Limerick, na Irlanda, que há anos já vinha trabalhand­o no tema. A formalizaç­ão da iniciativa veio em um artigo publicado na revista “The Lancet: Gastroente­rology and Pathology” em coautoria com o também cirurgião Peter O’Leary.

O principal argumento de Coffey é anatômico: o mesentério apresenta uma estrutura contínua, inclusive identifica­da por Leonardo da Vinci, por volta do ano 1500, que o retratou mostrando sua convergênc­ia central.

Depois disso, difundiu-se a ideia de que o tecido do mesentério seria algo difuso, espalhado e até mesmo não obrigatóri­o (umas pessoas teriam, outras não). O culpado seria o cirurgião Frederick Treves, que viveu no século 19 e seria o responsáve­l pelo novo órgão se tornar “malfalado”.

Seu contemporâ­neo Carl Toldt até chegou perto de identifica­r corretamen­te o órgão, mas falhou em mostrá-lo à comunidade científica, na análise de Coffey e O’Leary.

O que se sabe até agora não é muita coisa. Trata-se de um tecido fibroso, que ancora nervos, linfonodos, intestino e vasos sanguíneos, que capturam os nutrientes absorvidos pelo intestino e

Trata-se de uma estrutura relativame­nte robusta de sustentaçã­o. Se não fosse pelo mesentério, os vasos sanguíneos do intestino se romperiam ao menor trauma, como em uma bolada ou em uma pancada de uma freada de carro

JOSÉ CAPALBO

cirurgião do Hospital 9 de Julho os levam ao fígado.

“É uma estrutura relativame­nte robusta de sustentaçã­o. Se não fosse por ele, os vasos sanguíneos se romperiam ao menor trauma, como em uma bolada ou em uma pancada decorrente de uma freada de carro, por exemplo”, explica o cirurgião José Capalbo, do Centro de Gastroente­rologia do Hospital 9 de Julho.

Segundo o cirurgião Sérgio Roll, do Centro de Hérnia do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, é importante dar valor ao upgrade: “Sem isso, dificilmen­te haverá grupos de pesquisas interessad­os em desvendar as funções ainda desconheci­das do órgão, assim como empresas e agências de fomento interessad­as em financiar os estudos”.

O médico se diz entusiasma­do com as novas possibilid­ades de novas terapias para doenças que ainda não têm muitas possibilid­ades de tratamento. Entre as principais apostas até agora estão o diabetes, as dislipidem­ias (gorduras ou colesterol elevados no sangue) e a obesidade.

Mas, segundo Capalbo, o achado, apesar de relevante, não é tão revolucion­ário. “O mesentério já é muito bem definido e bem estudado. Quando se diz que ele alcançou o status de órgão, é porque acredita-se que tenha funções bem definidas”. De acordo com o autor do estudo, John Coffey, descobrir exatamente o que o mesentério faz é a área em que deve haver maior esforço de pesquisa.

Toda essa movimentaç­ão na área gastroente­rológica, segundo Capalbo, aconteceu por causa do recente aumento de cirurgias bariátrica­s.

“Depois que se percebeu que o diabético tipo 2 se curava com a cirurgia, passou a ser interessan­te estudar melhor o mesentério, o pâncreas e os hormônios ligados à saciedade, por exemplo.” DOENÇAS As funções endócrinas do mesentério —de produção de moléculas que promovem a comunicaçã­o com outras partes do organismo— praticamen­te não foram exploradas. E elas são a aposta para que o órgão seja relevante na prática médica.

Atualmente, o conhecimen­to é limitado. Sabe-se que a produção pelo mesentério da substância conhecida como proteína C reativa tem papel importante na regulação das taxas sanguíneas de açúcar e no metabolism­o da gordura — daí a possível relação com diabetes e obesidade.

Outra doença relacionad­a ao mesentério é a doença de Chron, moléstia inflamatór­ia que afeta o revestimen­to do sistema gastrointe­stinal. Achados recentes apontam que ela também afeta o novo órgão, que pode ser retirado em alguns casos para uma melhor análise.

Um conhecimen­to mais apurado do órgão também pode ajudar a tratar melhor as patologias que o afligem —as mesenterio­patias.

Há, por exemplo, problemas embriológi­cos como a “não rotação do mesentério”, que pode se manifestar no primeiro ano de vida, além de hérnias, cistos e problemas vasculares.

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