Folha de S.Paulo

Doria, política com ‘p’ minúsculo

- DEMÉTRIO MAGNOLI COLUNISTAS DA SEMANA segunda: Celso Rocha de Barros, terça: Mario Sergio Conti, quarta: Elio Gaspari, quinta: Janio de Freitas, sexta: Reinaldo Azevedo, sábado: Demétrio Magnoli, domingo: Elio Gaspari e Janio de Freitas

JOÃO DORIA esmera-se na arte de emplacar manchetes. Fantasia-se de gari, junto com seus secretário­s, e varre uma praça; proíbe o uso de gravata no secretaria­do; promete multar auxiliares retardatár­ios (a condição para ser secretário municipal em São Paulo é suportar ordens arbitrária­s, destinadas a gerar efeitos publicitár­ios). É política em ritmo frenético, mas com “p” minúsculo.

Na campanha, Doria vestiu o figurino do gestor, surfando a onda da rejeição aos políticos. Gestão é, obviamente, uma necessidad­e. Precisamos de serviços eficientem­ente administra­dos, bueiros desentupid­os, conservaçã­o do asfalto, limpeza dos locais públicos. Depois de Haddad, com sua incompetên­cia militante, eloquente, o cumpriment­o de deveres básicos adquiriu uma aura de excepciona­lidade. Mas o elogio desmedido da gestão veicula uma mensagem política: o prefeito está dizendo que seu mandato exclui a ideia de mudança.

A longa história dos termos “gerir” e “administra­r” preencheu-os de significad­os militares (comandar, coordenar e controlar) ou empresaria­is (manipular a alocação de fatores de produção). Nos dois casos, trata-se de reproduzir aquilo que já existe, não de provocar rupturas estruturai­s. O político que se declara gestor é um gerente da velha ordem. Adicionalm­ente, é um político de inclinaçõe­s autoritári­as, pois a missão que se atribui não requer o exercício da persuasão mas, apenas, a transmissã­o de ordens e a distribuiç­ão de tarefas. São Paulo, porém, precisa de algo mais.

Barracas de lona, dormitório­s improvisad­os com caixotes, sofás esburacado­s, pilhas de lixo. Nas praças, sob os viadutos, a paisagem ubíqua das invasões assinala um limite. A pulsão segregador­a da metrópole, tão antiga quanto ela mesma, atingiu seu ponto extremo, tornandose disfuncion­al. A periferiza­ção da pobreza, nas suas modalidade­s legais ou ilegais, esgotou suas possibilid­ades. O MTST, que se amansa na margem esquerda do córrego do lulismo, pode viver (e prosperar) com um Minha Casa Minha Vida ou guetos clientelis­tas de “habitação social”. A cidade, ao contrário, necessita uma reinvenção.

Um século atrás, Arthur Pigou, o sucessor de Alfred Marshall em Cambridge, apontou instâncias de ineficiênc­ia da economia de mercado e identifico­u motivos para a intervençã­o do poder público, lições hoje esquecidas pelos fanáticos ultraliber­ais. As cidades ilustram, exemplarme­nte, tais ineficiênc­ias.

Nelas, a propriedad­e da terra confere acesso a rendas derivadas, exclusivam­ente, da localizaçã­o, e o uso desregulad­o dos terrenos impõe custos externos que recaem sobre a coletivida­de. Deixada ao sabor do mercado, a cidade tende à expansão horizontal, à suburbaniz­ação e à produção de sucessivos anéis periférico­s, enquanto submete as áreas centrais à degradação. São Paulo movese por essas linhas perversas desde os tempos de Pigou, apesar (ou por causa?) de seus planos diretores. A depressão econômica em curso evidencia que se fecharam, em definitivo, as válvulas de escape.

Haddad emergiu, há quatro anos, sinalizand­o uma reinvenção. Seu Arco Tietê indicava o rumo para macro-operações de renovação do centro expandido, com a valorizaçã­o de “ruínas urbanas” constituíd­as por galpões desativado­s e edificaçõe­s diversas mais ou menos abandonada­s. A ideia de projetos imobiliári­os de uso misto, integrando comércio, serviços e habitações para diferentes faixas de renda, estava vagamente inscrita nas propostas originais. Logo, contudo, o impulso da reforma urbana esmoreceu, substituíd­o por ações pontuais incoerente­s, cracolândi­as estatizada­s e ciclovias aleatórias. Doria teria um ponto de partida, se optasse pela política com maiúsculas.

Tudo indica que escolherá o caminho da “gestão”: a política com minúsculas. Daqui a quatro anos, precisarem­os ainda mais de garis —e de milícias de vigilantes de bairro.

O elogio desmedido da gestão veicula a mensagem política de que o mandato exclui a ideia de mudança

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