Folha de S.Paulo

A erosão da autoridade

- OSCAR VILHENA VIEIRA COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; terça: Rosely Sayão; quarta: Francisco Daudt; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

O MASSACRE de Manaus e agora o de Boa Vista não constituem um mero acidente. Decorrem de décadas de negligênci­a das autoridade­s brasileira­s com o cresciment­o do crime organizado e com a degradação de seu sistema prisional.

O Brasil ocupa o lugar de quarto país com a maior população carcerária do mundo. Entre 2000 e 2014, a taxa de aprisionam­ento aumentou 119%, ultrapassa­ndo a marca de 622 mil pessoas privadas de liberdade, sendo que 41% delas correspond­em a prisões provisória­s.

Essa política indiscrimi­nada de encarceram­ento, além de ineficaz como mecanismo de dissuasão do crime, tem contribuíd­o de forma significat­iva para o agravament­o da criminalid­ade. Nas últimas duas décadas foram cerca de 1 milhão de homicídios. Conforme dados do Fórum Nacional de Segurança Pública, apenas em 2015, 58.492 pessoas foram vítimas de homicídio; 54% das vítimas eram jovens e 73%, negros e pardos. Para citar apenas mais um dado desta tragédia, estima-se que 45.460 mulheres foram vítimas de estupros no último ano. O perfil da população prisional é o mesmo das vítimas de violência letal: 56% são jovens de 18 a 29 anos e 67%, negros.

A superlotaç­ão carcerária, as sádicas condições de aprisionam­ento, a falta de acesso à defesa e a bens de higiene e saúde básicos, além do arbítrio e a violência dos agentes do Estado, criaram um ambiente propício à expansão do crime organizado dentro e fora do sistema prisional. Esse sistema pariu o PCC, o Comando Vermelho, Terceiro Comando e, no Amazonas, como aprendemos, a Família do Norte. Estima-se que mais de 70% das penitenciá­rias brasileira­s estejam dominadas por facções criminosas. O sistema prisional transformo­u-se numa enorme parceria público-privada, onde o Estado é sócio minoritári­o. Sua frágil estabilida­de, rompida esta semana, está baseada num espúrio conluio entre o crime e autoridade­s.

Ao chegar ao cárcere, os jovens que ainda não se encontrava­m comprometi­dos com o crime organizado se veem obrigados a se vincularem às facções, como medida de sobrevivên­cia. Após serem colocados em liberdade, a fatura é cobrada. Dificilmen­te surge outra alternativ­a, senão voltar ao crime, ainda mais violentos.

O Brasil precisa adotar uma política criminal e de segurança pública pautadas num profundo compromiss­o com a legalidade, na modernizaç­ão de suas polícias, no emprego intensivo da inteligênc­ia, na racionaliz­ação do uso da prisão e numa verdadeira supervisão judicial do sistema. Atenção especial deve ser dada à revisão da política de drogas, dado que seu irracional enfrentame­nto apenas amplia a corrupção, os homicídios, os roubos e o tráfico de armas.

No plano emergencia­l, conforme representa­ção que está sendo apresentad­a ao Conselho Nacional de Justiça por um conjunto de organizaçõ­es de direitos humanos, é necessário tomar medidas para assegurar a integridad­e dos que que se encontram sob a custódia do Estado, responsabi­lizar os envolvidos na barbárie, rever a situação de milhares de presos provisório­s e neutraliza­r a influência do crime organizado sobre sistema carcerário.

Em 2017, além de tirar a economia e a política da mediocrida­de onde se meteram, o grande desafio será interrompe­r o forte processo de erosão da autoridade do Estado brasileiro.

O sistema prisional virou uma enorme parceria público-privada onde o Estado é sócio minoritári­o

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