Folha de S.Paulo

O escritor, a jornalista e um prato de cerejas refrescant­es

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DE BUENOS AIRES

Em 2011, procurei Ricardo Piglia para fazer um perfil para a “Ilustríssi­ma”, em Buenos Aires. Havia mais de um “gancho” para a matéria: partes de seu diário seriam publicados pelo próprio caderno da Folha. Além disso, seu mais recente romance, “Alvo Noturno”, estava saindo no Brasil.

Fazia muito calor naquele fim de verão portenho e o escritório do autor ficava próximo ao centro. Piglia me recebeu com a cordialida­de de sempre, pedindo desculpas pelo fato de o local ser pequeno e, por conta da época do ano, muito abafado. Estava também tomado por estantes cheias de livros.

O único mobiliário que havia eram duas cadeiras e uma mesa de madeira no meio. E uma pequena geladeira, da qual Piglia tirou um prato de cerejas geladas e, àquela altura, muito refrescant­es. Falamos um pouco dos diários, um pouco do novo romance, mas boa parte da tarde foi gasta mesmo para que debatêssem­os seus escritores preferidos: Borges, Macedonio Fernández e a tradição deixada pelos autores do período pós-independên­cia, conhecidos como “Geração de 1837” —um movimento intelectua­l argentino que imaginou soluções e caminhos para a nação que dava seus primeiros passos políticos de modo independen­te.

Tempos depois, mandei um e-mail a Piglia. Eu estava estudando a obra de um autor que teve ligação com a tal “Geração de 1837”, Domingo Faustino Sarmiento, e lhe expliquei que se tratava de uma investigaç­ão pessoal, que não tinha que ver com o jornal.

Piglia não mudou o modo como me tratou. Me disse igualmente que fosse vê-lo. Que adorava Sarmiento e que adoraria passar horas conversand­o sobre o autor de “Facundo ou Civilizaçã­o e Barbárie”. Apareci pontualmen­te. Estavam ali a simpatia, a generosida­de e as cerejas —ainda que, neste caso, já se tratasse de uma tarde de inverno.

No final, perguntei se não achava que gastava tempo demais com alunos e curiosos e se não preferia ter mais horas livres para sua própria escritura. Piglia então me disse que isso iria contra o que aqueles mesmos autores que ele tanto admirava pregavam.

“A Argentina era um deserto não só de homens, mas também de ideias no começo do século 19. Se eles não se encontrass­em, conversass­em, elaborasse­m novas ideias juntos, não teriam um país. É por isso que falar deles nunca será perda de tempo. É povoar o deserto que a América Latina, em alguns sentidos, ainda é.” (SC)

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