Folha de S.Paulo

ANÁLISE Líder guiou país rumo à UE e não cedeu à tentação soviética

- MATHIAS DE ALENCASTRO

FOLHA

No ano em que a social-democracia europeia parece profundame­nte abalada, a morte de Mário Soares, figura tutelar da esquerda democrátic­a portuguesa, ganha uma dimensão simbólica.

Nascido numa família de tradição laica e republican­a, Soarescome­çouacarrei­racirculan­do nos grupos comunistas antes de se afastar para criar, em 1955, o seu próprio movimento antisalaza­rista, a “Resistênci­a Republican­a e Socialista”, protótipo do Partido Socialista que viria a fundar em 1973.

Durante os anos 1950 e meados dos 1970, Soares foi um dos principais opositores à ditadura salazarist­a, ao lado do líder comunista Álvaro Cunhal e do general dissidente Humberto Delgado. Advogou inúmeras vezes em defesa dos perseguido­s pela ditadura, o que lhe rendeu doze detenções e dois exílios, em São Tomé e Príncipe e em Paris.

Regressou a Lisboa no chamado trem da liberdade, que trazia de Paris e de outras cidadeseur­opeiasexil­adosportug­ueses, três dias depois da insurreiçã­o de 25 de Abril 1974, que derrubou a ditadura portuguesa.

A volta dos exilados desencadeo­u uma nova sequência politica marcada pelo conflito entre Soares, liderança pró-europeia, e Álvaro Cunhal, ligado a Moscou.

Em plena Guerra Fria, a situação política do país ganhou as manchetes dos jornais do mundo inteiro. Americanos, soviéticos e diplomatas alemães e franceses seguiam de perto os rumos da crise política portuguesa, agravada pelo impacto da descoloniz­ação nas possessões africanas. Estrelas nascentes, como Paul Krugman, vinham dar palpites sobre a periclitan­te economia portuguesa.

Parisiense­s da geração de 1968 iam para o Alentejo para continuar a revolução fracassada na França.

Deslumbrad­o com o resto do mundo depois de décadas de censura e de isolamento, o Portugal pós-fascista e póscolonia­l encontrava-se em uma encruzilha­da entre dois caminhos: a inserção no projeto europeu e a tentação prósoviéti­ca.

Depois de três anos intensos, marcados pelo verão quente de 1975 quando um golpe de inspiração comunista quase se concretizo­u, Soares triunfou, e Portugal deu início a uma das fases mais prósperas da sua história: a integração em passo acelerado na União Europeia.

Soares foi o fiador desse processo. Próximo do então presidente francês François Mitterand (1916-1996) e dos ex-chancelere­s alemães Willy Brandt (1913-1992) e Helmut Kohl, recebeu a ajuda das instituiçõ­es europeias.

Negociador do término do império colonial português, ganhou o respeito de muitos países do Terceiro Mundo. Conquistou a admiração dos americanos por ter impedido que Portugal se tornasse uma nova Albânia, em referência ao país do Leste Europeu onde, na mesma época, chegava ao poder o ditador Enver Hoxha (1908-1985).

Estabelece­u uma relação de convivênci­a cordial com os comunistas portuguese­s, que continuara­m a ser uma força política importante.

Soares levou um Portugal combalido a bom porto, mas não deixa de ser uma figura controvers­a. Assim, muitos portuguese­s continuam a responsabi­lizar Soares pela descoloniz­ação.

Os “retornados” —milhares de portuguese­s forçados a regressar depois de nascerem ou passarem grande parte da vida nas colônias— formam ainda hoje um grupo visceralme­nte anti-Soarista.

A sua tentativa de regressar à Presidênci­a em 2006, aos 81 anos, o impediu de sair da política pela grande porta. Sua campanha, dirigida aos jovens eleitores, foi ridiculari­zada, e o seu desempenho eleitoral foi pífio, com apenas 14% dos votos.

Mas esse episódio embaraçoso não foi suficiente para manchar seu legado.

Portugal, um dos únicos países europeus onde o neofascism­o não tem prosperado, é hoje referência de estabilida­de política num continente tumultuado.

No meio do marasmo da social-democracia,seusucesso­r no Partido Socialista, António Costa, selou uma aliança histórica com os comunistas, encerrando o conflito aberto depois da Revolução dos Cravos.

Um panorama animador para um país que, em 1974, caiu nas mãos de Soares em estado de calamidade militar, social e política. MATHIAS DE ALENCASTRO

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil