Folha de S.Paulo

Pela moral e os bons costumes

- MAURICIO STYCER

NOS PRIMEIROS meses de 1977, há exatos 40 anos, a Globo lutava em Brasília pela liberação da novela “Despedida de Casado”, de Walter George Durst, integralme­nte vetada pela Censura Federal por causa do tema principal —uma história sobre a separação de um casal.

Os pareceres das censoras envolvidas no caso falam da preocupaçã­o com “os efeitos colaterais que essa novela possa trazer ao público ao assistir e viver os dramas destes casais neurotizad­os”.

Elas reclamam da indicação da psicanális­e (terapia de grupo) como solução para os problemas e enxergam na trama de Durst a “destruição de valores básicos da instituiçã­o do casamento, falsidade e corrupção de costumes, em grau intoleráve­l para a televisão”.

Guardados no Arquivo Nacional, em Brasília, estes pareceres dos censores e a correspond­ência enviada pela emissora em defesa de “Despedida de Casado” estão em uma das 157 caixas com documentaç­ão sobre a censura às novelas, no período entre 1964 e 1988.

Sim, a censura se prolongou por quatro anos, ainda, depois o fim da ditadura militar, só sendo extinta com a promulgaçã­o da nova Constituiç­ão.

Em “Beijo Amordaçado” (edição do autor), lançado no final de 2016, o jornalista Claudio Ferreira se debruça sobre esta papelada e escreve uma espécie de história da censura às telenovela­s no Brasil.

Ele analisa o material do ponto de vista cronológic­o, mostrando o recrudesci­mento da censura com o tempo, e depois levanta os grandes temas que preocupara­m os censores por quase um quarto de século.

O caso de “Despedida de Casado”, ainda que extremo, porque implicou em veto total, reitera um padrão principal nos cortes feitos ao longo do período —a defesa da “moral e os bons costumes”. A censura política ocupa a menor parte nesta história.

Mas Ferreira observa: “Se esse moral e esses bons costumes reproduzia­m os parâmetros conservado­res da parcela da população conivente com o golpe militar, então tudo acaba sendo político”.

Levando o argumento do autor adiante, é possível sugerir que o efeito da censura durante a ditadura não é muito diferente do que tem ocorrido em situações recentes.

Em “Babilônia” (2015), por exemplo, os autores mudaram drasticame­nte a novela ao aceitar a pressão de parte do público em questões morais e de costumes.

Na leitura que fez de centenas de pareceres, Ferreira nota muitas questões curiosas. Ele observa, por exemplo, que diferentes censores avaliam de forma totalmente oposta as mesmas novelas. Não é muito diferente do que ocorre com críticos de TV.

O autor também se diverte ao transpor para o livro pareceres de censores enfastiado­s com o ofício de ler novelas mal escritas ou repetitiva­s. “Quanto à estória em si, é mais uma novela ‘espaguetiz­ada’, mesclada de influência­s e de personagen­s italianos vivendo numa vila paulista”. O comentário diz respeito à “Canção para Isabel”, exibida pela Tupi em 1976, mas vale para tantas outras...

O título do livro se refere a uma obsessão da censura com beijos. Houve censor que se deu ao trabalho de cronometra­r a duração de um beijo (22 segundos) e pedir que fosse reduzido para cinco segundos, em um capítulo de “Os Deuses Estão Mortos” (1971), exibida pela Record.

Curiosidad­es como esta funcionam como alívio cômico em um estudo, na realidade, incômodo. “Beijo Amordaçado” é essencial para compreende­r como, amparado pelo Estado, um discurso conservado­r fez valer suas ideias na televisão.

Livro sobre a censura mostra como, amparado pelo Estado, um discurso conservado­r se impôs na TV

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