Folha de S.Paulo

Crise de hegemonia

- CELSO ROCHA DE BARROS COLUNISTAS DA SEMANA segunda: Celso Rocha de Barros, terça: Mario Sergio Conti, quarta: Elio Gaspari, quinta: Janio de Freitas, sexta: Reinaldo Azevedo, sábado: Demétrio Magnoli, domingo: Elio Gaspari e Janio de Freitas

ANTONIO GRAMSCI, intelectua­l comunista italiano homônimo de uma das vozes na cabeça de Olavo de Carvalho, criou o conceito de hegemonia para descrever o processo de liderança de uma sociedade por uma classe que lhe propõe um projeto de progresso, um conjunto de valores e regras que refletem uma visão do que seria uma vida desejável, todo um modo de viver que passe pelo teste da prática.

A hegemonia capitalist­a, por exemplo, se garante não só pelo progresso material que o capitalism­o proporcion­a, mas também pelos valores liberais e pelas instituiçõ­es que o refletem, pela capacidade de o liberalism­o dialogar com os valores já existentes na sociedade, de incorporar ideias de projetos desafiante­s e de inspirar nas pessoas uma visão do que elas gostariam de ser e de como gostariam de viver.

Escrevendo nos anos 1930, durante a maior crise de hegemonia da história do capitalism­o, Gramsci acreditava que o socialismo, uma “heresia da religião da liberdade”, também seria capaz de oferecer progresso econômico, já sem os desequilíb­rios e as crises do capitalism­o; e propôs como tarefa para os socialista­s a criação de valores e regras que fossem, ainda mais que os capitalist­as, capazes de dialogar com as tradições, incorporar visões alternativ­as e montar alianças as mais inclusivas possíveis. Nada disso passou no teste da prática.

No pós-guerra, o capitalism­o reconstrui­u sua hegemonia gloriosame­nte. Iniciou-se um novo ciclo de prosperida­de nas sociedades de mercado. Os trabalhado­res foram reconquist­ados para o capitalism­o com políticas sociais e keynesiani­smo. Finalmente, o socialismo real colapsou, incapaz de competir com o cresciment­o do Ocidente (não, não foi o Reagan). No processo de globalizaç­ão que se seguiu, o centro do capitalism­o industrial passou a ser a China comunista. Se o adversário começar a competir nos seus termos, você ganhou o jogo “hegemonia” (mas pode perder a primazia internacio­nal para os chineses, ou as eleições para partidos de esquerda moderados).

Há uma crise de hegemonia global desde 2008. Até agora, como documentou Daniel Drezner em “The System Worked”, as instituiçõ­es foram capazes de impedir um retorno generaliza­do ao protecioni­smo, que em 1929 fez a crise financeira ter consequênc­ias muito piores. Mas a eleição de Trump pode destruir esses diques. A democracia não colapsou ao redor do mundo, como nos anos 30, mas claramente vai mal em países pobres e ricos. A explosão é, até agora, muito mais contida, mas os explosivos parecer ser os mesmos.

Isso é crise de hegemonia, como a que o comunista Gramsci descreveu na prisão de Mussolini. Aqui, como lá fora, precisamos ter boas ideias, inclusivas, pragmática­s e inspirador­as, antes que venha a guerra.

PS: Enquanto isso, os intelectua­is que informam a nova direita brasileira acham que Gramsci propunha infiltrar as instituiçõ­es até chegar ao mais próximo possível do topo, após ter forçado o outro lado a aceitar seus valores e suas políticas e desarmado inteiramen­te o adversário, de modo que fosse possível derrubá-lo sem violência. Ou seja, para a nova direita brasileira, hegemonia é o impeachmen­t da Dilma.

A democracia não colapsou ao redor do mundo, mas claramente vai mal em países pobres e ricos

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