Folha de S.Paulo

Após Aleppo

- HUSSEIN KALOUT

A LÓGICA por trás da reconquist­a de Aleppo pelo regime sírio e seus aliados vai, no fundo, um pouco além da simples retomada da segunda cidade mais importante do país, depois da capital, Damasco.

Da perspectiv­a geoestraté­gica, recuperar Aleppo das mãos dos movimentos armados antirregim­e e de grupos terrorista­s como Jabhat Fateh Al-Sham e Estado Islâmico correspond­e, fundamenta­lmente, a plasmar uma nova equação geopolític­a e exterioriz­ar, sem titubeios, quem são os derrotados nesse conflito regional.

Na gramática política da coalização militar pró-Assad, reintegrar Aleppo à “Síria útil” resulta nas seguintes variáveis: 1) vincular o curso de quaisquer negociaçõe­s diplomátic­as entre regime e oposição à realidade do terreno; 2) impedir a fragmentaç­ão do país; 3) selar as principais passagens da fronteira norte com a Turquia, cortando as linhas de suprimento; 4) invalidar as já deteriorad­as cartas que turcos, sauditas, qatarianos e americanos ainda usavam para pressionar o regime sírio, Rússia e Irã e subsidiar os mais variados grupos armados.

O anúncio de redução da presença militar russa na Síria é um sinal de que o regime está a salvo, e o cessar-fogo acordado significa que a deposição do governo não é mais a opção para a maioria dos jogadores envolvidos nessa tragédia humana. Se a Turquia, por um lado, paga altíssimo preço por sua escolha de se envolver no conflito de forma inconseque­nte, a Arábia Saudita recolhe os seus cacos na Síria e no Iêmen e se prepara para recalibrar as suas armas contra os iranianos, à espera da nova administra­ção nos EUA.

Apesar dessas reposições políticas no tabuleiro, veremos ainda, por um certo período, a balcanizaç­ão da Síria nos moldes do vizinho Iraque. O sectarismo, as perseguiçõ­es religiosas e os atentados terrorista­s, lamentavel­mente, não são variáveis que tendem a se extinguir automatica­mente com o eventual fim do conflito. A instabilid­ade na Síria seguirá como prioritári­a para alguns países da região, apesar de sua derrota no contexto geopolític­o.

Ancara, Riad e Doha, no fundo, subestimar­am o valor estratégic­o da Síria para Moscou, Teerã e o Hizbullah, assim como a importânci­a de Damasco para a coesão do “eixo da resistênci­a” no âmbito da arquitetur­a da segurança regional do Oriente Médio. O fato é que a aliança pró-Síria sai politicame­nte fortalecid­a e organicame­nte mais integrada da perspectiv­a militar.

Outro ponto que retrata a fragmentaç­ão da coalizão saudita-turco-americana é a aproximaçã­o entre turcos e russos e turcos e iranianos. O encontro de Astana, no Cazaquistã­o, que dará início às negociaçõe­s de paz entre regime e oposição sírios, com o beneplácit­o de Moscou e a presença de Irã e Turquia, serve como indicativo para compreende­r quem são os detentores das rédeas dessa nova equação política em torno da questão.

O sucesso de Astana poderia estancar a queda livre do poder da Turquia da região, ampliar a influência regional do Irã e recolocar a Rússia como poderoso ator militar e diplomátic­o no Oriente Médio, de forma definitiva —preservand­o-se a estrutura do regime sírio.

Agora é aguardar para ver qual será a diretriz da nova política externa dos EUA para a Síria e como isso se conjugará com o novo formato de poder médio-oriental.

Recuperar a 2ª cidade síria mais importante significa, ao regime, mostrar quem está perdendo o conflito

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