Folha de S.Paulo

Avanço do PCC para o Norte indica cartelizaç­ão do tráfico

GUERRA PELO CONTROLE DA DROGA NOS PAÍSES VIZINHOS ACIRROU CONFLITOS ENTRE FACÇÕES E PROVOCOU MASSACRES EM PRESÍDIOS

- LETÍCIA CASADO

DE BRASÍLIA

Secretário de cooperação internacio­nal da Procurador­ia-Geral da República, o procurador Vladimir Aras, 45, diz que o avanço da facção criminosa PCC para o Norte do país, como mostram recentes conflitos em presídios, indica que a organizaçã­o tem interesse em dominar rotas internacio­nais e a cadeia de produção de cocaína.

“O método de avanço territoria­l é a cartelizaç­ão por meio da absorção de pequenos esquemas criminosos ou pelo conflito aberto, a disputa sangrenta, dentro e fora dos presídios”, declara Aras.

O avanço do PCC para além de São Paulo acirrou os conflitos com outras facções, como CV (Comando Vermelho) e FDN (Família do Norte).

O procurador destaca que a desmobiliz­ação das Farc (Forças Armadas Revolucion­árias da Colômbia) abre espaço para o PCC entrar no território colombiano.

Ele alerta para um possível embate entre grupos criminosos pelo controle da cocaína na América do Sul.

“Países vizinhos têm suas próprias organizaçõ­es criminosas que podem se associar às nossas ou entrar em conflito com elas. É o jogo que veremos nos próximos anos: se haverá uma associação de grandes organizaçõ­es ou guerra entre os grupos.”

Para o procurador, a solução para o problema do narcotráfi­co passa por descrimina­lizar as drogas. Internacio­nalização do PCC

É natural ver organizaçõ­es criminosas como o PCC migrando para o Norte do Brasil. Já estão no Nordeste e se espalharam pelo Centro-Oeste, procurando regiões de fronteira com Paraguai, Bolívia, Peru e Colômbia. Isso pode indicar que o interesse dessa organizaçã­o é dominar o ciclo produtivo da cocaína, de produção e refino, os laboratóri­os, até distribuiç­ão para o consumidor final —esteja no Brasil, nos Estados Unidos ou na Europa. O avanço se dá justamente pela facilidade dessas regiões despovoada­s, sem controle do Estado, com fronteiras porosas e pouco policiamen­to dos dois lados. Plano Nacional de Segurança

No que diz respeito ao sistema prisional, é necessário. Mas tem que coordenar com atividades de inteligênc­ia e de troca de informação entre os órgãos de segurança, em articulaçã­o regional entre países produtores e grandes mercados consumidor­es. Sem a troca de dados tributário­s e financeiro­s sobre lava- gem de dinheiro que ajudem a identifica­r onde estão as fortunas do narcotráfi­co, não será possível sequer trincar o império das drogas. Cartelizaç­ão

O método de avanço territoria­l é a cartelizaç­ão por meio da absorção de pequenos esquemas criminosos ou pelo conflito aberto, a disputa sangrenta, dentro e fora dos presídios. A dominação territoria­l depende muitas vezes da violência. Os países vizinhos têm suas próprias organizaçõ­es criminosas, que podem se associar às nossas ou entrar em conflito com elas. Esse é o jogo que vereapreen­dida mos nos próximos anos: se haverá uma associação de grandes organizaçõ­es criminosas transnacio­nais ou se haverá guerra entre os grupos criminosos fortes que já operam há anos na Colômbia ou no México, por exemplo, e grupos que atuam no Brasil. Tráfico transacion­al de droga

É um problema complexo que envolve não só políticas nacionais relacionad­as ao sistema prisional, mas também a luta transnacio­nal contra o narcotráfi­co. Não é possível lutar sem coordenar as autoridade­s do Brasil com as dos países vizinhos, especialme­nte os produtores de maconha e cocaína, como Paraguai, Bolívia, Peru e Colômbia. Todos os esquemas hoje têm conotação transnacio­nal. Não há tráfico de cocaína puramente doméstico no Brasil. Partindo disso, o crime passa a ser de competênci­a federal. Deficiênci­as

Há uma série de rotas lucrativas que exploram deficiênci­as do país. Não temos tecnologia para rastreamen­to de cargas ou identifica­ção de rotas em áreas de selva. Não temos policiamen­to presencial nem acordo de cooperação adequada nos 16 mil km de fronteiras. Faltam scanners em portos e aeroportos para controlar grandes cargas. Então, há completa deficiênci­a do Estado brasileiro. O Brasil, portanto, se torna interessan­te para passagem de droga para Estados Unidos e Europa, que remuneram bem os esquemas criminosos. Farc

A desmobiliz­ação das Farc em razão do acordo de paz, necessário e importante, cria uma preocupaçã­o lateral: o que farão as pessoas que ficaram desmobiliz­adas? O que acontecerá com os ex-guerrilhei­ros? Poderão ser arregiment­ados? Muitos acabaram entrando na narcoguerr­ilha mas a pergunta é se poderiam, de algum modo, ser aliciados por organizaçõ­es criminosas brasileira­s que operam na região Norte. Rotas internacio­nais

Pedidos de cooperação internacio­nal apontam a existência de rotas aéreas do Centro-Oeste do Brasil ao hemisfério Norte e de rotas pelos rios amazônicos —onde correm verdadeiro­s rios de dinheiro em forma de cocaína— que viram rotas oceânicas rumo à Europa. Existem inúmeras rotas além das aéreas usadas por “mulas”, que carregam pouca droga dentro do corpo. As mais importante­s são as de grandes carregamen­tos — meia, uma ou duas toneladas de cocaína—, levadas em cargueiros transatlân­ticos oceânicos ou por via terrestre a partir de rotas nas selvas sulamerica­nas. Há também o uso de veleiros e iates com capacidade de navegação oceânica, que partem do Brasil, sobretudo do Nordeste. Cooperação

Temos pedidos de Honduras sobre tráfico em pequenos aviões saindo do Brasil. Israel nos pediu a identifica­ção de amostra de cocaína no Paraná para comparar com cocaína apreendida por lá.

O México fez pedido no caso do massacre São Fernando para que identificá­ssemos vítimas da chacina —a investigaç­ão apurava esquema de tráfico de pessoas supostamen­te mortas pelo cartel. É outra face do narcotráfi­co: associar-se ao tráfico humano, o que barateia para o cartel o transporte da droga rumo aos Estados Unidos. Tratados

É importante a formalizaç­ão de tratados regionais de cooperação com foco em integração de organismos regionais de segurança pública e Justiça para permitir, por exemplo, a formação de equipes conjuntas de investigaç­ão entre polícias e ministério públicos de vários países, o gerenciame­nto conjunto de informaçõe­s e de casos criminais, além de mecanismos para perseguiçã­o policial transfront­eiriça. Não adianta atingir esquema criminoso apenas de um lado da fronteira; é preciso alcançá-lo em todos os locais. Descrimina­lização

Como professor de processo penal, diria que, do ponto de vista da economia, da criminolog­ia e da segurança pública, numa perspectiv­a ideal, a solução passa por descrimina­lizar as drogas, um debate que a sociedade brasileira precisa fazer seriamente e no seu devido tempo. A discussão deve também refletir percepções científica­s da medicina e de consensos globais, como os que levaram as Nações Unidas a adotar a atual política criminal de proibição e repressão, que tem se mostrado malsucedid­a.

“de dados tributário­s e financeiro­s sobre lavagem de dinheiro que ajudem a identifica­r onde estão as fortunas do narcotráfi­co, não será possível sequer trincar o império das drogas “vista da economia, da criminolog­ia e da segurança pública, numa perspectiv­a ideal, a solução passa por descrimina­lizar as drogas, um debate que a sociedade brasileira precisa fazer seriamente

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Ruy Baron/Valor Vladimir Aras, 45, secretário de cooperação internacio­nal da PGR

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