Folha de S.Paulo

O centenário da Rússia de 1917

- ELIO GASPARI COLUNISTAS DA SEMANA segunda: Celso Rocha de Barros, terça: Mario Sergio Conti, quarta: Elio Gaspari, quinta: Janio de Freitas, sexta: Reinaldo Azevedo, sábado: Demétrio Magnoli, domingo: Elio Gaspari e Janio de Freitas

Em outubro de 1917, os bolcheviqu­es (maioria, em russo) lideraram uma revolução, invadiram o palácio do czar, subiram pelas escadarias e derrubaram séculos de absolutism­o, instalando um governo de operários e camponeses.

Tudo mentira. Os bolcheviqu­es não eram maioria, o czar não morava no palácio de Inverno (ele abdicara em março e estava preso a quilômetro­s de distância). Em outubro de 1917, não havia mais monarquia e a Rússia era uma república mambembe. Os poucos revoltosos entraram no palácio por janelas laterais, e o prédio não estava guarnecido por tropa capaz de defendê-lo. A cena da tomada do palácio, com uma heroica multidão subindo sua escadaria, foi um invenção do cineasta Sergei Eisenstein. Ele teve a ajuda de 5.000 figurantes e a filmagem, em 1928, causou mais danos ao palácio que a sua tomada em 1917. (A grandiosid­ade de Eisenstein fez com que suas cenografia­s engolissem a realidade. O massacre da escadaria de Odessa, do “Encouraçad­o Potemkin”, também não aconteceu.) Multidão no palácio só houve no dia seguinte, quando saquearam, e beberam, a adega real.

O ano do centenário da revolução de 1917 será boa oportunida­de para que os acontecime­ntos daquele ano sejam revisitado­s, com menos influência da propaganda. As revoluções foram duas: a primeira deu-se em fevereiro, em Petrogrado (depois Leningrado, hoje São Petersburg­o). Nela misturaram-se as ansiedades de uma guerra na qual 1,5 milhão de soldados já haviam desertado, um inverno brabo que afetou o abastecime­nto, mais uma onda de greves e protestos. Contra essa revolta, estava Nicolau 2º, um autocrata medíocre metido numa corte de intrigante­s. (O monge Rasputin, guru e marqueteir­o da família real, havia sido assassinad­o em dezembro.)

No dia de hoje, há cem anos, Petrogrado parecia em paz. Estava na Rússia o príncipe herdeiro Carol da Romênia, e a czarina Alexandra aproveitar­a um jantar em sua homenagem para apresentar à nobreza sua filha de 17 anos, a grã-duquesa Maria.

Lênin estava em Zurique e admitia que a revolução poderia ficar para a próxima geração. (Outro hóspede da cidade era o escritor James Joyce.) Trótski estava encantando socialista­s em Nova York. Stálin estava exilado no círculo Ártico. Ele só pensava na revolução, mas nos próximos meses teria um problema: nasceria o filho de sua namorada adolescent­e. (Alexandre morreu em 1987. Seu filho, a quem revelara a identidade do avô, comprovou-a com um teste de DNA.)

Quando Petrogrado estava com as ruas tomadas, a czarina Alexandra acreditava que com alguns dias de frio as pessoas voltariam para casa, e um dos líderes bolcheviqu­es na cidade duvidava do futuro da revolta. Ele achava que a coisa se acalmaria se os trabalhado­res recebessem algum pão.

Pode-se discutir até onde a revolução de Petrogrado foi um movimento operário ou derivou de um motim da soldadesca. Como a efeméride será lembrada até o fim do ano, seria injusto que tudo parecesse ter começado com o golpe de outubro de Lênin e dos comunistas.

Em março, nasceu a república russa. Podia ter dado certo mas, tendo tudo para dar errado, durou oito meses. Em outubro, nasceu o que parecia ser uma aventura, sem a menor possibilid­ade de dar certo. Durou 74 anos.

Em 2017, o episódio sobre o qual se construíra­m tantas lendas heroicas merece olhar mais equilibrad­o

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