Folha de S.Paulo

Para pôr fim às facções, melhor forma é dar mais segurança a presos

- FABIANO MAISONNAVE LEANDRO NARLOCH

DE MANAUS

A atuação das facções criminosas na Amazônia está ligada ao controle do fornecimen­to da cocaína peruana para o Norte, Nordeste e Centro-Oeste do país, um negócio com lucro anual estimado em US$ 4,5 bilhões.

Essas informaçõe­s constam de relatório do serviço de inteligênc­ia da Secretaria de Segurança Pública do Amazonas, com base em dados fornecidos por secretaria­s de outros Estados e colhidas pela Polícia Federal nos últimos anos nas fronteiras do Brasil com o Peru e a Colômbia.

O documento foi elaborado em resposta à disputa entre as facções criminosas Família do Norte (FDN), aliada do Comando Vermelho (CV), e o Primeiro Comando da Capital (PCC), que deixaram ao menos 64 mortos em presídios de Manaus desde o Ano-Novo, muitos deles decapitado­s.

Para a elaboração, o Amazonas enviou um questionár­io padrão a todos os Estados das três regiões abastecida­s pelas rotas amazônicas, sobretudo a do rio Solimões (com cocaína peruana).

Dos dez Estados que respondera­m à consulta, sete têm presença do PCC (AC, AL, CE, MA, RO, RR e SE), seis detectaram núcleos do CV (AC, AL, CE, MA, RO e RR) e dois registram a atividade da Família do Norte (AC e RR).

Em diversos Estados, há também facções locais, como Facções que atuam dentro e fora dos presídios nos Estados Primeiro Comando da Capital (PCC) Comando Vermelho (CV) Família do Norte (FDN) Amigos dos Amigos (ADA) Bonde dos 13 (B13) Irmandade Força Ativa Acreana (Ifara) Firma Guardiães do Estado (GDE) Primeiro Comando do Maranhão (PCM) Anjos da Morte Família do Nordeste Bonde dos 40 Comando Classe A (CCA) Primeiro Comando Sergipano (PCS) Primeiro Comando do Município Valquíria o Bonde dos 13 no Acre, os Anjos da Morte no Maranhão e o Comando Classe A no Pará. Dois Estados, Goiás e Rio Grande do Norte, informaram que não há facções criminosas em seus território­s.

O Estado do Amazonas, com seus 3.209 km de fronteira com o Peru e a Colômbia, tem a presença das três facções, sendo a FDN, criada em Manaus, a que mais mobiliza drogas e recursos nessa ampla região. Por outro lado, o PCC controla principalm­ente a rota que usa o território paraguaio para abastecer o Centro-Sul com cocaína peruana e boliviana.

Em ambos os casos, o destino principal é o mercado brasileiro, segundo o relatório. O Brasil aparece em segundo lugar no ranking entre os países consumidor­es de cocaína, atrás apenas dos EUA, de acordo com estudo da ONU publicado em 2015.

O dinheiro envolvido está na casa dos bilhões. Apenas na fronteira com o Peru, onde a PF estima que haja 10 mil hectares de coca plantados, o lucro da atividade estaria em US$ 4,5 bilhões. O cálculo não inclui os lucros gerados com a cocaína colombia- na, que entra em menor escala, por falta de informaçõe­s disponívei­s sobre área plantada e produtivid­ade.

“Os resultados obtidos indicam que o Amazonas se configura como o principal corredor do ingresso de cocaína no Brasil, provenient­e dos cultivos de coca nas fronteiras Brasil-Peru e Brasil-Colômbia”, diz o relatório.

O documento diz que o número atual de policiais militares e civis no Amazonas é insuficien­te para enfrentar a intensa atividade do narcotráfi­co no Estado. “Para se manterem em funcioname­nto em to- do o território estadual, esses órgãos necessitam de, pelo menos, 15 mil policiais militares e 2.670 policiais civis, sendo que, atualmente, existem 8.900 (-40%) policiais militares e 1.905 (-29%) policiais civis”, afirma a nota.

“Se não houver uma guinada, estaremos no caminho do México”, disse o secretário de Segurança Pública do Amazonas, Sérgio Fontes. Delegado da PF de formação, Fontes afirma que a prioridade é melhorar a proteção das fronteiras. “Tem de ter acompanham­ento perene. Fiscalizaç­ão esporádica não funciona.”

FOLHA

A matança nas penitenciá­rias brasileira­s leva à rápida conclusão de que gangues e facções são a raiz da violência dos presídios. Mas talvez exista aí uma falácia de relação e causa —não é porque duas coisas acontecem juntas que uma é causa da outra.

David Skarbek, professor de economia do crime organizado do King’s College, em Londres, aposta na ideia contrária: gangues dominam tantas prisões no mundo porque são forma improvisad­a de os presos garantirem segurança e ordem para si próprios.

No livro “The Social Order of the Undergroun­d”, o economista conclui que gangues ajudam a proteger direitos de propriedad­e, garantem a execução de contratos e promovem estabilida­de para o tráfico e o comércio (quase sempre ilegal nas cadeias).

A intenção de Skarbek não é tratar os presos como bons selvagens ou romantizar o crime organizado, mas entender por que máfias e facções brotam nas penitenciá­rias.

Ao ingressar numa prisão, um condenado sabe que passará anos vulnerável à violência de outros presos. Por mais que os guardas se esforcem, não são capazes de garantir a paz. Num lugar assim, ficar sozinho não é uma boa ideia. O preso, para se proteger, precisa arranjar outra “instituiçã­o de governança”.

Essa instituiçã­o, diz Skarbek, são “sistemas de responsabi­lidade comunitári­a” como as gangues. Os integrante­s desse tipo de comunidade são responsáve­is pela proteção e pelas ações dos colegas. Se alguém pisar na bola, todos pagam. Por isso há pressão entre os membros para que andem na linha.

As gangues não são a origem da violência, diz Skarbek, mas o sintoma da falta de instituiçõ­es de proteção.

Para ele, a melhor forma de combater a violência desses grupos é eliminando a demanda pelas facções —com cadeias menores que forneçam mais segurança e mediação de conflitos aos presos.

O mais interessan­te é que as facções com frequência derivam para fenômeno similar ao que deu origem a monarquias europeias, dinastias chinesas e Estados em geral.

O ponto de partida é a “guerra hobbesiana”, de todos contra todos. Para não ter que lidar com a inseguranç­a a todo momento, os indivíduos buscam proteção aderindo a gangues ou coroas.

Não demora para esses grupos entrarem em guerra. Quando o conflito acaba (com uma aliança ou com a vitória de um dos lados), um monopólio de violência se forma e a paz começa a reinar.

O massacre em Manaus, desse ponto de vista, é uma miniatura de batalhas da Guerra dos Cem Anos ou da Segunda Guerra Mundial.

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