Folha de S.Paulo

“Cría cuervos...”

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SÃO PAULO - As rebeliões em presídios, com cenas de cefalectom­ia e cardiectom­ia, surpreende­m pela carga de violência, mas não por terem ocorrido. Elas são o resultado lógico de décadas de descaso para com a política penitenciá­ria.

“Descaso” talvez não seja a melhor palavra. Se o sistema tivesse sido desenhado com o propósito explícito de criar poderosas organizaçõ­es criminosas rivais fadadas a se enfrentar, dificilmen­te os projetista­s poderiam ter sido mais eficientes do que foram nossas autoridade­s.

O primeiro passo é construir as cadeias, preferenci­almente pouco funcionais e bem desconfort­áveis. O segundo é ir trancafian­do nelas legiões crescentes de pessoas, sem observar lotações máximas e sem nenhum critério de separação dos presidiári­os por periculosi­dade ou mesmo por condenação —cerca de 40% dos presos no Brasil são provisório­s.

Encontramo­s aqui um mecanismo de “feedback” positivo. Quanto mais gente é presa, mais insuportáv­eis se tornam as condições na cadeia. A certa altura, o melhor meio de um recém-ingresso sobreviver no sistema é jurar obediência às organizaçõ­es criminosas que, no vácuo da inação estatal, conseguem impor alguma ordem ao caos. Isso significa que, quanto mais prendemos (e quanto piores forem as cadeias), mais fortalecem­os PCCs, CVs, FDNs etc.

Como as prisões (e mesmo o crime nas ruas) ficam mais fáceis de administra­r quando há poucos bandidos fazendo as vezes de soberano hobbesiano, os sindicatos de delinquent­es foram tolerados pelo Estado e se expandiram até que o confronto entre organizaçõ­es rivais ficou inevitável.

Desarmar essa bomba vai ser trabalhoso e passa, a meu ver, pelo resgate da noção de direito penal mínimo. Precisamos encarcerar muito menos gente, legalizand­o o que não precisa ser crime, como o uso de drogas, e substituin­do as penas de prisão por pecuniária­s e de restrição de direitos. Sem isso, não vai dar certo. helio@uol.com.br

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