Folha de S.Paulo

Ansiedade? Melhor sem

- SUZANA HERCULANO-HOUZEL

FOI UM ano difícil: estresse contínuo causado por financiame­ntos concedidos mas não pagos pelo governo para custear nossa pesquisa, ameaça de fechar laboratóri­o e mandar alunos para casa, campanha de crowdfundi­ng, viagens seguidas para entrevista­s de emprego nos EUA, gastos, problemas familiares imprevisto­s assim que recebi o novo contrato de trabalho, mais gastos, burocracia­s variadas para mudar casa-laboratóri­o-família-cachorros-coleção-preciosa-decérebros para outro país.

Levou um tempo até eu me dar conta, mas após meses de tensão contínua, dor muscular e náusea, um mau humor que nunca foi meu e irritação fora do ponto com qualquer deslize de filho e marido, não havia mais como ignorar: estava sofrendo de ansiedade crônica, e ela já afetava as pessoas ao meu redor.

Fui salva pela nova médica que me acompanha. Nunca tive transtorno­s mentais além de enxaqueca, nem a menor tendência a depressão. Daí minha surpresa com sua sugestão: quer experiment­ar Prozac?

O remédio é conhecido como antidepres­sivo, e por causa da fama, até eu, que supostamen­te sei alguma coisa sobre como ele funciona, havia esquecido que a mesma ação neurogênic­a que restaura a motivação, ao agir no estriado, também recupera o freio interno do hipocampo. Sítio de formação de memórias novas, o hipocampo também cuida de manter memórias recentes reverberan­do, como a lista mental de problemas por resolver. Descarrila­do, berra alarmes sem parar.

Aceitei, claro —na pior das hipóteses, eu pararia se tivesse efeitos colaterais horríveis.

Antidepres­sivos levam umas duas semanas para agir, sinal de que não mudam simplesmen­te a “química” do cérebro, e sim iniciam um processo mais lento de recuperaçã­o, que requer gerar células novas.

Eu já havia esquecido que tomava o remédio quando, 12 dias depois, entrei em um voo voltando de um congresso. Habituada à cabeça gritando lembretes e planos, estranhei a novidade: ao tomar meu assento e curtir o momento de desligar tudo, o silêncio interior me chamou a atenção. Era uma sensação de paz mental e tranquilid­ade que eu não conhecia havia mais de um ano.

Sim, a lista de afazeres continua lá —mas meu cérebro não berra mais comigo o tempo todo. Santa neurociênc­ia básica e aplicada: ganhei minha vida de volta.

A lista de afazeres continua lá, mas o cérebro não berra mais comigo: com o Prozac, ganhei minha vida de volta

SUZANA HERCULANO-HOUZEL suzanahh@gmail.com

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