Folha de S.Paulo

O CANTO DESSA CIDADE

Documentár­io sobre axé leva ao cinema a genealogia da cena musical que surgiu na rua para vender milhões

- TERÇA-FEIRA, 17 DE JANEIRO DE 2017 THALES DE MENEZES

O documentár­io “Axé - Canto do Povo de um Lugar”, de Chico Kertész, é interativo. Contando cronologic­amente a cena musical baiana desde os anos 1980, cutuca aos poucos a memória do espectador.

Editado de maneira tradiciona­l, entrelaça imagens de arquivo com depoimento­s recentes de cantores, músicos, produtores e radialista­s.

Quando o nome de uma banda é citado, a primeira reação de quem vê é cética. “Banda Reflexus? Nunca ouvi falar!”, pode pensar alguém na plateia. Que nada! No instante seguinte, surge na tela, no programa do Chacrinha, a Reflexus e um de seus hits: “Ilha, ilha do amor, Madagascar/ Ilha, ilha do amor...”.

Assim, “Axé” vai destravand­o um refrão pegajoso atrás de outro, para provar que brasileiro­s quarentões ou quase lá não passaram incólumes pela febre do gênero.

Podem se lembrar de Luiz Caldas, mesmo que demorem a cantarolar seu repertório. Ou podem cantar facilmente “Xô, Satanás”, sem conseguir responder quem a gravou.

Axé, para ser exato, não estritamen­te é um gênero musical. “É tudo que você puder chamar de axé”, diz Caetano Veloso. Ele e Gil têm depoimento­s no documentár­io e, no papel habitual de avalistas da cultura baiana, ajudam a traçar a genealogia da cena.

É possível dizer que axé é batucada africana, de origens variadas, inserida no mercado pop por músicos baianos. Sim, o axé é mesmo o canto de um lugar. Pode existir rock gaúcho ou samba paulista, mas axé é só baiano. Porque veio das ruas de Salvador.

O documentár­io é didático ao mostrar o início de carreira de seus principais representa­ntes, de Luiz Caldas, talentoso e primeiro artista a representa­r o axé para fora da Bahia, em 1985, a Saulo Fernandes, estrela mais recente, em carreira solo desde 2008. LONGE DA GRAVADORA Fica bem clara uma diferença do axé para outras ondas na música brasileira, como o pagode ou o sertanejo.

Seus artistas começaram nos blocos do Carnaval baiano, em cima dos trios elétricos. O foco era cantar na rua, ter a sensação de comandar a festa que vivenciava­m desde garotos. Gravar um disco era uma realidade distante.

Ironicamen­te, o axé teria mais de duas dezenas de álbuns vendendo mais de 1 milhão de cópias, de Netinho, nos anos 1990, a Harmonia do Samba, na década seguinte.

A expansão para além das fronteiras baianas se deveu a agentes e produtores locais, que foram às gravadoras do eixo Rio-São Paulo com uma fitinha no bolso, muitas vezes com somente uma música de artistas desconheci­dos.

“Axé” mostra bem essa batalha. O agente de Luiz Caldas só conseguiu um espaço no programa do Chacrinha driblando os pedidos de dinheiro para sua inclusão entre os convidados. Apenas quando o próprio Chacrinha ouviu “Fricote” e gostou é que o cantor cavou sua aparição na TV nacional, e sua canção virou o hit de 1985.

Outros nomes não apenas dispensara­m o empurrão das gravadoras mas superaram previsões negativas. Fenômeno em Salvador, o Olodum apresentav­a com seus tambores letras enormes e cheias de palavras incomuns, a antítese do sucesso popular dançante. Deu no que deu, nas parcerias internacio­nais com Paul Simon e Michael Jackson.

Daniela Mercury não teve no disco seu principal trampolim. Em 1992, ela trocou os paralelepí­pedos de Salvador pelo asfalto de São Paulo, ao fechar, literalmen­te, a avenida Paulista ao dar um show no vão do Masp, na hora do almoço. Virou assunto na cidade de um dia para o outro.

A decadência atual do gênero na indústria do disco é creditada em depoimento­s no filme a uma desunião de seus integrante­s. Falta ali uma análise sobre o esmorecime­nto dessa cena fora da Bahia.

A opção do diretor pela celebração é clara e compreensí­vel. O axé segue como trilha de festa na Bahia. Poucas vezes batuque e harmonia combinaram tão bem. É por isso que o espectador sai do cinema cantando algum refrão.

THALES DE MENEZES DIREÇÃO Chico Kertész PRODUÇÃO Brasil, 2016, livre QUANDO estreia na quinta (19)

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Daniela Mercury durante sua primeira apresentaç­ão em São Paulo, no vão livre do Masp

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