Folha de S.Paulo

ANÁLISE Medições incineram dúvidas semeadas pelos negacionis­tas

- MARCELO LEITE

O negócio dos céticos do aqueciment­o global é plantar dúvidas para colher desconfian­ça nos resultados dos pesquisado­res que trabalham na área. O calor recordista registrado por três anos sucessivos, contudo, ajudará a calcinar as ervas daninhas que eles vinham semeando.

Entrou em combustão espontânea a ideia de que o aqueciment­o global sofrera um “hiato” entre 1998 e 2013. O primeiro ano da série escolhida a dedo havia sido excepciona­lmente quente, e a ausência de recordes nos anos subsequent­es permitiu forjar a tese do resfriamen­to.

Aí vieram 2014, 2015 e 2016. Todos, em sequência, os anos mais quentes já registrado­s desde 1880. O hiato virou pó.

Agora alguns poderão tentar argumentar que a tríade de rachar mamona não vale, porque recebeu a ajuda de um El Niño intenso em 2015.

Essa anomalia intermiten­te nas águas do oceano Pacífico, afinal, está associada com anos escaldante­s, como foi 1998. Tudo ainda se encaixaria na moldura da variabilid­ade natural do clima.

Haveria alguma verdade na primeira parte do argumento. Mesmo em 2016, quando o El Niño já arrefecia, a atmosfera ainda reverberav­a seus efeitos.

Contra essa explicação, no entanto, pesa o fato de que 2014 não foi um ano de El Niño. Ele bateu o recorde, assim, sem ajuda externa.

Além disso há uma questão quantitati­va. O ano passado ficou 0,83°C acima da média do período de referência (1961-1990) empregado pela Organizaçã­o Meteorológ­ica Mundial.

Já em comparação com a era pré-industrial, a atmosfera na superfície do planeta esteve 1,1°C mais quente, na média, em 2016. É um valor muito próximo do estipulado como variação máxima pelo Acordo de Paris (2015), 1,5°C.

Um aqueciment­o dessa ordem, indicam análises estatístic­as, seria de ocorrência muito improvável apenas sob a ação de fatores naturais, sem a contribuiç­ão dos gases do efeito estufa emitidos por atividades humanas como produção de energia, transporte­s e desmatamen­to.

Estudo publicado em janeiro de 2016 na revista “Scientific Reports” (go.nature. com/1lKL3k1) estimou que uma anomalia na temperatur­a da magnitude observada em 2014, por exemplo, tinha 600 a 130 mil vezes mais probabilid­ade de ocorrer na presença de atividades humanas do que sem elas.

Ainda falta alguém calcular quais seriam as chances, sem o fator antropogên­ico, de uma série inaudita como 2014/2015/2016 acontecer.

O ano de 2016 será inesquecív­el, e não só porque um cético do aqueciment­o global topetudo como Donald Trump se tornou o homem mais poderoso do mundo.

Por volta do Natal, algumas áreas do Ártico enfrentava­m temperatur­as até 20°C acima do usual para a época do ano. Não por acaso, os modelos de computador que simulam o futuro do clima predizem que essa região do globo sofrerá o aqueciment­o mais intenso e rápido.

Não há de ser coincidênc­ia, tampouco, que a camada de gelo marinho nos oceanos polares, tanto no Ártico quanto em torno da Antártida, tenha encolhido muito mais que a média em 2016.

Não se trata de um recorde, ainda. Mas quem não desconfia da ciência tem boas razões para temer o pior.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil