Folha de S.Paulo

Confessand­o o inconfessá­vel

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RIO DE JANEIRO - Nelson Rodrigues chegou da rua e sua mulher lhe deu a notícia: “Sabe quem morreu? O Guimarães Rosa. O rádio acabou de dar”. Arriscou: “Desastre?”. E ela: “Coração”. Nelson foi para a varanda e, contemplan­do o perfil noturno dos prédios de Ipanema, constatou horrorizad­o que aquela notícia lhe dava uma secreta, inconfessá­vel satisfação. Sim, ele tinha inveja do sucesso, do prestígio e até da pose de Guimarães Rosa. Inveja literária.

Bem, como ficamos sabendo disto? Porque o próprio Nelson nos contou, em sua coluna “Confissões de Nelson Rodrigues”, que ele começara a publicar no “Globo” naqueles dias de 1967. Um amigo meu indignouse: “Como alguém pode ter um sentimento tão baixo?”. Outros, como eu, viram a coisa de modo diferente: o sentimento era, de fato, baixo, típico do ser humano. Mas a disposição de admiti-lo (e por escrito, para centenas de milhares de leitores) revelava grandeza. Quantos são capazes de confessar o inconfessá­vel?

Essa história de Nelson me ocorreu ao saber da morte do ministro Teori Zavascki. Ela aconteceu às vésperas da homologaçã­o pelo juiz das delações dos executivos da Odebrecht, capazes de compromete­r centenas de políticos. Perguntei-me quantos destes políticos não sentiram a mesma secreta e inconfessá­vel satisfação ao ouvir a notícia da queda do avião. E quantos ainda, entre estes, teriam a dignidade de admiti-la publicamen­te, como Nelson Rodrigues.

Não que a morte de Teori vá aliviá-los de alguma maneira. As delações já foram tomadas, os processos continuarã­o correndo e, espera-se, o rigor de Teori terá impregnado cada membro da equipe que continuar a investigaç­ão.

Naquela mesma noite, de pé na varanda, ao pensar na integridad­e literária de Guimarães Rosa, Nelson converteu-se a ele e sentiu-se intimament­e um pulha por ter reagido daquela forma à sua morte. ANDRÉ SINGER avsinger@usp.br

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