Folha de S.Paulo

Retratos do Brasil

- DEMÉTRIO MAGNOLI COLUNISTAS DA SEMANA segunda: Celso Rocha de Barros, terça: Mario Sergio Conti, quarta: Elio Gaspari, quinta: Janio de Freitas, sexta: Reinaldo Azevedo, sábado: Demétrio Magnoli, domingo: Elio Gaspari e Janio de Freitas

DIANTE DE cada notícia de mortes e massacres em penitenciá­rias, lembro de Bruno Júlio, o ex-secretário de Juventude de Temer. Sua esperança de termos “uma chacina por semana” vai se realizando —e, acostumand­o-nos com elas, aproximamo­nos um pouco mais da barbárie.

Falar de direitos humanos para Júlio e seus admiradore­s é perda de tempo. Mas será que, além de moralmente imprestáve­is, são ignorantes a ponto de não entender o efeito das chacinas? Não chegam nem mesmo a intuir que cada nova matança é um triunfo do crime organizado? Que elas expandem a influência das facções nos presídios, compelindo os detentos ainda fora de suas cadeias de comando a buscarem a proteção vital que o Estado lhes nega?

Diante das estatístic­as do deficit prisional, lembro de José Eduardo Cardozo, o farisaico ministro da Justiça de Dilma. Dizendo o óbvio, Cardozo classifico­u a hipótese de permanênci­a de Júlio como “uma afronta”, mas calou-se sobre as 700 mil vagas faltantes nos estabeleci­mentos carcerário­s, como se nada tivesse com isso. A chacina de 2010 em Pedrinhas (MA) precedeu em três meses sua ascensão ao cargo de ministro.

Nos anos seguintes, sob seus olhos, mais de seis dezenas de presos foram mortos na mesma penitenciá­ria. Durante a longa “era PT”, o sistema prisional conheceu abandono similar ao dos demais bens públicos, na saúde, na educação e nos transporte­s, enquanto o governo “de esquerda” armava um modelo baseado no financiame­nto permanente do consumo privado. “Afronta”, você disse?

Mas, diante dessas aterradora­s estatístic­as, lembro também de Alexandre de Moraes. O ministro da Justiça de Temer, um apadrinhad­o de Alckmin, dá as costas para as raízes da tragédia. Seguindo as pegadas de Cardozo, ele não esboça iniciativa alguma no rumo de reformas na legislação penal destinadas a impedir o aprisionam­ento em massa de pés-rapados, microtrafi­cantes e aviõezinho­s.

O Brasil ostenta, ao mesmo tempo, a quarta maior população carcerária do mundo e índices alarmantes de violência urbana. Contudo, insistimos na combinação de uma indústria de encarceram­ento de zé-ninguéns com uma mal disfarçada leniência frente ao crime organizado. Não é “afronta” converter as penitenciá­rias em campos de recrutamen­to do PCC, do CV, da ADA, da FDN e do PCN?

Diante da estimativa de que, nas cadeias abarrotada­s, há cerca de 250 mil presos provisório­s, lembro de uma extensa lista de advogados célebres, representa­ntes legais dos réus do “mensalão” e do “petrolão”, sempre prontos a denunciar violações reais ou imaginária­s dos direitos de seus poderosos clientes.

Com honrosas exceções, esses paladinos do direito de defesa retraem-se a uma distante indiferenç­a quando se trata da sorte de pobres diabos trancafiad­os longamente à espera de julgamento ou do alvará de soltura após cumpriment­o de sentença. É que aprendemos, pela direita e pela esquerda, a distinguir cuidadosam­ente as “pessoas incomuns” das “pessoas comuns”.

Não há como evitar associaçõe­s significat­ivas. Diante das evidências de que, em diversas penitenciá­rias, o poder deslocou-se das autoridade­s para as facções, lembro de Marcelo Odebrecht e Lula.

Se, nesses anos de verde-amarelismo patrioteir­o, o Estado foi privatizad­o e as empresas estatais entregues a bandidos VIP, por que os presídios não seriam cedidos aos bandidos ordinários? Em Alcaçuz (RN), a polícia negociou com o PCC a operação de transferên­cia de presos.

Da segurança pública à segurança nacional: a partir das penitenciá­rias “privatizad­as”, a Família do Norte, afiliada ao CV, e o Primeiro Comando do Norte, afiliado ao PCC, disputam o controle das rotas do narcotráfi­co nas fronteiras amazônicas. Colômbia, México? Temos um pouco de cada um, mas ainda fingimos que o alarme não soou.

Os presídios em chamas formam uma galeria de retratos do Brasil.

Se estatais foram entregues a bandidos VIP, por que presídios não seriam cedidos aos ordinários?

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