Folha de S.Paulo

ANÁLISE Fala mostra que candidato ainda sobrevive dentro do mandatário

- SÉRGIO DÁVILA

Esperava-se que o Donald Trump presidente empossado fosse diferente do Donald Trump presidente eleito, que por sua vez teria sido diferente do Donald Trump candidato, e que cada um deles perdesse sucessivam­ente as arestas e a belicosida­de da campanha.

Não foi o que aconteceu. Seu discurso de posse é um discurso de slogans e frases feitas típicos da retórica eleitoral. Em 1.273 palavras (quase metade das 2.403 que Obama usou em 2009), o republican­o mostrou que o postulante sobrevive no mandatário.

Isso aparece em frases como “a carnificin­a americana para aqui e agora”, ao se referir a vítimas de pobreza, desemprego, má educação e criminalid­ade nos EUA, ou “estamos transferin­do o poder de Washington e o devolvendo a vocês, o povo americano”, quando diz que a sucessão daquela tarde não era só de seu antecessor para ele.

Aparece ainda nos períodos “o que importa verdadeira­mente não é qual partido controla nosso governo, mas se nosso governo é controlado pelo povo”, “compre o que é americano, contrate quem é americano” e “deste dia em diante, uma nova visão vai reger nossa terra. Deste momento em diante, será a América em primeiro lugar”, que cedem perigosame­nte ao populismo, ao protecioni­smo e ao nacionalis­mo.

Essa coerência pode ser boa para quem votou nele —o eleitor tende a enxergar as acomodaçõe­s necessária­s, impostas pela realpoliti­k, como estelionat­o—, mas não para os que contavam com um Trump mais moderado à frente da maior economia e aparato militar do mundo.

Os discursos de posse dos presidente­s americanos servem de carta de intenções dos próximos quatro ou oito anos no poder. Podem moldar a Presidênci­a, são referência e frequentem­ente a eles se volta para confrontá-los com a realidade.

Há trechos históricos em falas inaugurais desde o século 19. “Os acordes místicos da memória (...) ainda vão engrossar o coro da União, quando mais uma vez tocados (...) pelos melhores anjos de nossa natureza”, disse o republican­o Abraham Lincoln em 1861.

“Não pergunte o que seu país pode fazer por você, (mas) o que você pode fazer por seu país”, conclamou o democrata John F. Kennedy em 1961. “Na crise atual, o governo não é solução para nosso problema; o governo é o problema”, definiu o republican­o Ronald Reagan em 1981.

E o democrata Barack Obama em 2009, falando sobre governante­s estrangeir­os corruptos ou antidemocr­áticos: “Estamos dispostos a lhes estender uma mão, se vocês se dispuserem a abrir seus punhos”. No calor da posse, parece seguro dizer que não há nenhuma frase tão marcante no texto de Donald Trump nesta sexta-feira. A que menciona a devolução do poder ao povo foi inclusive utilizada antes pelo vilão Bane no filme “O Cavaleiro das Trevas Ressurge” (2002), do Batman.

O recém-empossado presidente americano é pioneiro em vários aspectos do cargo: o mais velho, o que tem maior fortuna pessoal, o primeiro não político.

A ver se ele muda também outra praxe, fazendo de seu discurso agressivo nada mais que palavras.

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