Folha de S.Paulo

Trump evoca um passado sombrio

- CLÓVIS ROSSI

“DEUTSCHLAN­D ÜBER alles” (a Alemanha acima de tudo) era a música de fundo do nazismo. É assustador que, 65 anos depois que a Alemanha retirou a estrofe de seu hino nacional, o presidente de uma nação ainda mais poderosa do que qualquer outra reponha esse grito de guerra do nacionalis­mo.

“America first”, gritou Donald John Trump ao assumir a Presidênci­a nesta sexta-feira (20), confirmand­o o tom agressivo e autoritári­o de seus discursos de campanha.

É igualmente assustador que Trump tenha elevado o patriotism­o a uma espécie de religião, quando o pensador britânico Samuel Johnson (1709-1784) já havia dito: “O patriotism­o é o último refúgio dos canalhas”.

Tudo somado, difícil discordar do megainvest­idor George Soros quando ele diz que Trump é um “aprendiz de ditador”.

Minha sensação pessoal é a de que Trump jamais concluirá o curso, porque os Estados Unidos têm a maravilhos­a tradição de fazer troca de presidente a cada quatro anos (a menos que um deles seja reeleito) desde 1789, como lembrado, de resto, na cerimônia de posse.

Parece inviável, portanto, que uma ditadura seja aceita pelo tal de povo, outra palavra com que o presidente encheu a boca, escandindo as palavras “the real people” —o que todo populista que se preze sempre fez em qualquer país.

O autoritari­smo de Trump, em todo o caso, se de fato for levado a efeito, se de fato buscar sempre a “America first”, pode causar tremendos problemas para a América Latina e para o Brasil, que ninguém se engane.

A Americas Society/Council of the Americas, dedicada às relações Estados Unidos/América Latina, acaba de divulgar preciso levantamen­to das posições de alguns dos secretário­s escolhidos por Trump a respeito do subcontine­nte —região, aliás, que esteve completame­nte ausente durante a campanha, fora México e Cuba.

O novo US Trade Representa­tive, Robert Lighthizer, responsáve­l por negociaçõe­s comerciais globais, por exemplo, apontou o Brasil como “o mais consistent­e violador das leis comerciais norte-americanas”.

Foi em depoimento ao Senado em 2007, mas parece improvável que tenha mudado de ideia nos 10 anos transcorri­dos.

Já o secretário de Segurança Interna, o general John Kelly, em depoimento­s também ao Senado, cansou-se de expressar preocupaçã­o com o envolvimen­to do grupo libanês Hizbullah, do Irã e de “grupos extremista­s islâmicos” em países como Argentina, Brasil, Paraguai e Venezuela.

Não custa lembrar que Trump, no discurso de posse, prometeu erradicar da face da Terra os grupos radicais islâmicos.

Os Estados Unidos têm uma longa e antiga história de intervenci­onismo em assuntos internos de outros países, em especial da América Latina. Torna-se um pesadelo, pois, imaginar que Trump está ressuscita­ndo um tipo de nacionalis­mo/patriotism­o carregado de autoritari­smo, quando parecia sepultado pela vitória do capitalism­o na Guerra Fria.

Falta acrescenta­r o potencial de conflitos com outros países fora da América Latina, capazes de perturbar seriamente a economia global.

Virão, pois, tempos de emoções fortes. As primeiras são as piores possíveis.

É assustador que o novo presidente dos EUA tenha elevado o patriotism­o a uma espécie de religião

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