Giro em direção à Rússia representa incógnita
‘Détente’ defendida por Trump pode render frutos positivos ou se tornar instrumento para pressionar adversários
FOLHA
Donald Trump, pródigo em zigue-zagues nos sinais sobre sua política externa, apresenta rara coerência ao falar de Vladimir Putin. O presidente americano promete estancar a ressurreição da Guerra Fria, hoje em fase adiantada, e fala em se aproximar do Kremlin, em movimento cujos alicerces ainda não estão claros.
Um mistério recai sobre a motivação de Trump. Seria a “détente” com a Rússia fruto de uma visão estratégica, apoiada na importância de diminuir as rusgas entre Casa Branca e Kremlin, ou sobretudo uma moeda de troca para arrancar concessões do establishment em Washington, de países europeus e de mandarins em Pequim?
A distensão sustentada por Trump gera calafrios entre democratas e republicanos, pois se fortaleceu no país, nos últimos anos, a percepção da Rússia como principal adversário dos EUA em escala global. O democrata Joe Biden, nos últimos dias como vicepresidente, desembarcou em Davos, na Suíça, e refletiu a onda, ao definir Moscou como “a maior ameaça à ordem democrática internacional”.
O tom à la Guerra Fria contaminou sabatinas, no Senado, para indicados ao governo Trump. O Kremlin constitui a principal ameaça aos EUA, sustentou James Mattis, da Defesa, enquanto Mike Pompeo, da CIA, disparou: “A Rússia se reafirma agressivamente, invadindo e ocupando a Ucrânia, ameaçando a Europa”.
O governo russo também é acusado de influenciar a eleição americana, com ciberataques na campanha, e de ter acumulado material comprometedor, de natureza empresarial e sexual, sobre Trump, a fim de chantageá-lo. O Kremlin rejeita as acusações.
Trump, ao se aproximar de Putin, nada contra a maré em Washington. Em uma de suas últimas entrevistas antes da posse, sugeriu não ver diferença entre o presidente russo e a chanceler alemã, Angela Merkel, aliada dos EUA, sustentando que, ao menos no início, “confiaria igualmente nos dois”.
O flerte de Trump com o putinismo também provoca incertezas no governo chinês. Ao ensaiar a aproximação com o Kremlin, o novo presidente dos EUA sinaliza aliança com potencial para sabotar os laços entre Rússia e China, fortalecidos nos últimos anos. Russos e chineses se aproximaram como resposta a pressões de Washington, provocadas por crises como o conflito na Ucrânia e disputas no mar do Sul da China.
Se a aproximação com a RússiaarquitetadaporTrump estiver apoiada em visão estratégica, Washington e Moscou deverão, por exemplo, construir políticas conjuntas para combater o Estado Islâmico e buscar saída negociada para a guerra da Síria.
Outro vetor de uma nova política bilateral teria a Europa como palco. Trump trabalharia para amenizar sanções à Rússia pelo conflito na Ucrânia e para esvaziar o papel da Otan, a aliança militar criada pelos EUA, na Guerra Fria, para enfrentar a URSS.
Um enfraquecimento da Otan preocupa países europeus habituados a contar com o guarda-chuva da proteção militar americana.
No entanto, Trump pode promover uma aproximação com a Rússia mais modesta, para, em troca, arrancar concessões de políticos em Washington, de aliados europeus ou do governo chinês, descrito como o “grande inimigo comercial”.
Trump ainda não mostrou se prevalecerá o perfil de negociante ou de estrategista. Desvendar tal enigma corresponde a uma chave fundamental para compreender o norte, nos próximos anos, do presidente da maior potência do planeta.