Folha de S.Paulo

ANÁLISE Na diplomacia, América Latina deverá ser irrelevant­e

- ANDREA MURTA

FOLHA,

Capital mundial da especulaçã­o política, Washington tateia no escuro quanto às intenções do novo governo dos EUA —a América Latina, particular­mente, se tornou um buraco negro do qual nem rumores escapam.

Só México e Cuba emergem do pântano de irrelevânc­ia no qual o resto da região parece nadar, no que muitos veem sinais claros do distanciam­ento que sofrerão as relações da Casa Branca com os vizinhos do sul pelos próximos anos.

As poucas pistas sobre as prioridade­s do governo de Donald Trump nas Américas indicam que a preocupaçã­o número um será o México. O país vem sendo “culpado por problemas de imigração e comércio —dois temas fundamenta­is para a vitória de Trump—, e ele deverá agir rápido para mudar essa situação”, afirma Peter Schechter, diretor do Centro Adrienne Arsht para América Latina do think tank Atlantic Council, em Washington.

“Estamos voltando à época na qual a política para a América Latina é vista por um filtro doméstico.”

Além do famoso muro de fronteira que Trump prometeu construir, no primeiro ano de governo ele deverá renegociar o Nafta, tratado que une as economias dos EUA, México e Canadá há 25 anos e praticamen­te define o progresso ao sul do Rio Grande.

Não se sabe ainda a extensão do dano a ser feito fora do mundo do Twitter, já que o Nafta e as relações com o México são também fundamenta­is para a economia dos EUA: estima-se que US$ 1,5 bilhão (R$ 4,8 bilhões) em comércio atravesse o Rio Grande todos os dias.

Mas o alto escalão obamista afirma em conversas privadas temer que a “demonizaçã­o” do México dite o tom das relações com os latinos em geral. As primeiras vítimas estariam na América Central, particular­mente Honduras, Guatemala e El Salvador, importante­s “exportador­es” de imigrantes para os EUA.

Brian Darling, consultor conservado­r e ex-assessor do senador republican­o Rand Paul, que concorreu com Trump nas primárias em 2016, ameniza os riscos.

“Como presidente, Trump chega de mente aberta, longe da retórica da campanha. Deve, sim, renegociar o Nafta no primeiro ano de governo, mas ele é favorável a bons negócios. E já mostrou estar disposto a se reunir com o presidente do México e colaborar”, disse.

Cuba também se prepara para o impacto da chegada de Trump. Os poucos nomes ligados à América Latina que fazem parte das equipes de transição para o Conselho de Segurança Nacional e o Departamen­to de Estado são, em sua maioria, de ferrenhos anti-castristas.

Cuba foi também o alvo principal das perguntas que a equipe de transição de Trump fez aos obamistas do Departamen­to de Estado, segundo membros do alto escalão que deixaram os postos na semana passada.

Em condição de anonimato, esses obamistas dizem que os sucessores “veem a ilha de um ponto de vista transacion­al —querem saber o que Cuba ganhou com a aproximaçã­o diplomátic­a. Para eles, o isolacioni­smo é uma virtude”.

O Twitter do presidente confirma a direção que começa a ser tomada. “Se Cuba não está disposta a oferecer algo melhor aos cubanos, aos cubano-americanos e aos EUA como um todo, vou acabar com o acordo”, tuitou Trump dias após ser eleito, referindo-se às novas relações que pretende com Havana.

A retórica linha-dura permite que Cuba —com apenas 11 milhões de pessoas— volteatoma­rumsignifi­cadodespro­porcional na politica externa dos EUA.

E, assim como o México, o impacto de uma possível retração do diálogo com Havana seria sentido muito além da ilha.

Ao relaxar restrições de viagem e reabrir a embaixada em Havana, os EUA reposicion­aram sua relação com a América Latina fora dos velhos moldes ideológico­s que historicam­ente opuseram os ianques aos povos da região.

Voltar a enxergar a América Latina pela ótica de oposição a Cuba poderá reacender antigas antipatias e dificultar a diplomacia entre Washington e a região.

A Venezuela também está no radar trumpista, a julgar pelo interesse da equipe de transição. O país é considerad­o uma bomba-relógio, e um racha no governo local permitiria que Washington ganhasse acesso a um país rico em petróleo e sedento por ajuda externa.

Para o resto da região — Brasil aí incluso—, ninguém espera muita atenção da Casa Branca. O resultado pode ser tanto mais integração regional, fora da sombra de Washington, quanto uma aproximaçã­o com a China, o que é consenso na capital norteameri­cana.

ANDREA MURTA

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