Projeto português ensina idosos a grafitar
Ativo desde 2012, Lata 65 busca a reinserção dessa faixa etária no espaço público da cidade e a quebra de rotina
Participante detida pela polícia ao sair sozinha para pintar muros disse à fundadora que ganhou nova razão para viver
Salvo o crochê, Maria Cruz, 62, não tinha contato algum com as artes. Mas, há dois anos, ela trocou as agulhas pelas latinhas de spray e pintou um muro em Lisboa.
Cruz participava de uma oficina de grafite voltada a idosos portugueses. O projeto, chamado Lata 65, tem crescido em Portugal e já respinga no Brasil. Houve uma edição no Sesc Santana, em setembro de 2015.
Ela conta à Folha que, à época, vinha reclamando de sua saúde. “Eu estava me sentindo longe de tudo, um bocadinho depressiva”, afirma, mas alegrou-se ao dedicar-se ao desafio de cortar moldes e grafitar a cidade.
“É complicado, porque eu estava trabalhando em um território desconhecido. Mas logo veio o entusiasmo e foi muito compensador”, diz.
A alegria que ela relata é um dos objetivos do projeto Lata 65, cofundado em 2012 pela arquiteta Lara Seixo.
Outra das metas é devolver idosos ao espaço público. “As cidades estão bombardeadas pela arte urbana. É uma questão de inclusão, porque eles passam a entender o que é feito na cidade deles”, diz Seixo.
O Lata 65, que já teve 23 edições, é resultado de trabalhos anteriores de Seixo com artes visuais. Ela conta que, naqueles anos, notava um maior entusiasmo por parte dos idosos. “Decidi trabalhar com eles e me disseram que
“
Sempre admirei os grafites feitos por essa gente nova. Eu nunca tinha me imaginado no meio da cidade, pintando uma parede. Aconteceu
EDUARDO MACHADO, 70
aposentado era uma loucura. Mas gostei muito do resultado.”
O projeto é financiado pela venda de merchandising, como camisetas. A própria logomarca do Lata 65 foi desenhada por uma participante, que passou a sair sozinha para pintar os muros e chegou a ser detida pela polícia. Ela morreu no ano passado.
Essa grafiteira tardia era um dos exemplos dos resultados das oficinas de grafite, diz Seixo. “Ela falava que demos a ela uma nova razão para viver, após um derrame.”
O relato se repete entre os participantes ouvidos pela reportagem. “As diferentes experiências e o aprendizado sãobenéficosparaosmaisvelhos,porquenosmantêmatualizados”, diz Isabel Paço, 63, do Porto. “Nos sentimos felizes, ativos, vivos, úteis.”
O trabalho com idosos é, para Seixo, uma tarefa portanto urgente. Falta apoio a essa população, diz. A própria arquitetura os exclui, com prédios antigos sem elevador, em ladeiras íngremes.
“Tenho medo de vir a ser tratada como alguns dos idosos que participam da minha oficina, que estão à espera de morrer. Isso é uma coisa que me toca”, afirma. Apesar de as oficinas serem abertas a todos os idosos, a maior parte dos alunos são mulheres, diz Seixo.
Um dos poucos homens a se interessar foi Eduardo Machado, 70, que depois de aposentado passou a experimentar cerâmica e aquarela.
“Sempre admirei os grafites feitos por essa gente nova. Alguns fazem rabiscos a vida toda, mas outros se aperfeiçoam. Eu nunca tinha me imaginado assim, no meio da cidade, pintando uma parede. Aconteceu.”