Folha de S.Paulo

Ausência de João Cabral

São Paulo, 1994

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dão é que é a imagem do canavial.

O mais importante é que o canavial tem gênero e forma: “É como um grande lençol/ sem dobras e sem bainha;/ penugem de moça ao sol,/ roupa lavada estendida”. Eis o ponto: é a mulher que faz desbordar as dimensões que o poeta quer conter. Seu corpo recurva a paisagem retilínea.

E assim João Cabral, talvez na contramão do que pretendia, se aproxima do desenho de Niemeyer, cuja medida é o corpo feminino. Aliás, é interessan­te registrar que Joaquim Cardoso foi o calculista das obras de Niemeyer.

A mulher é a casa (“a vontade de corrê-la/ por dentro, de visitála”), e isso põe o poeta em conceito oposto aos de Le Corbusier e Gerrit Rietveld, cuja proximidad­e sua obra evoca.

A mulher é o mar (“o dom de se derramar/ que as águas faz femininas”), o fogo da dançarina (“gestos das folhas do fogo,/ de seu cabelo, sua língua”) e a voz (“fresca e clara, como se/ telefonass­es despida”). Mar, fogo e som não cabem em esquadros.

Mulher que ele vê “numa gaiola”, tendo a assediá-la um pássaro —que é o resto do universo que com a gaiola faz divisa—, porque sem ela ele se sente em um cárcere, embora só lhe falte o espaço míni- mo que a mulher habita —ou que a veste (“de uma gaiola vestida”).

O universo, o pássaro, é João Cabral, que se sente enjaulado por não tirar a mulher da gaiola e incorporá-la a seu domínio, mesmo tendo domado o mundo com sua régua. Ela está fora das paredes de pau a pique, de cimento e cal, de argila e pedra de seu verso —e por isso ele se incompleta, se incomoda.

É essa incompletu­de que o define. O poema “Uma Faca só Lâmina” é sua confissão, está enterrado em seu corpo o peso da ausência, a avidez por algo que não se obtém: “Seja bala, relógio,/ ou a lâmina colérica,/ é contudo uma ausência/ o que esse homem leva”.

É isso o que está entredito na dedicatóri­a que ganhei do autor em seu livro “Obra Completa”, de 1994, da editora Nova Aguilar. Na noite de autógrafos, ao saber meu nome, ele se surpreende­u e escreveu: “Para o Piva, que tem a sorte de ser conhecido laconicame­nte, of. [oferece] o prolixo João Cabral deMeloNeto”.

Ele está insatisfei­to por não ter obtido a concisão que queria, a começar pelo próprio nome. Mas é mais do que o nome. É sua poesia e sua existência que estão incompleta­s. A ausência é sua marca. Nos poemas, a ausência tem a forma da mulher, indomável e inalcançáv­el. Na dedicatóri­a, está o lamento quanto ao nome longo, anticoncre­to, quase parnasiano.

O curioso é que na noite do lançamento eu tinha viajado e quem pegou o autógrafo foi um amigo, que para tal se apresentou com meu nome.

Isso mesmo. A dedicatóri­a é para mim. Mas eu estava ausente.

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