Folha de S.Paulo

UMA RELAÇÃO COMPLICADA

O muro de Trump é mais um capítulo na longa história de divergênci­as entre os EUA e o México, que começou com uma guerra no século 19

- IGOR GIELOW

Quando um faroeste clássico norte-americano descreve um mexicano, ele usualmente é um salteador ou um preguiçoso. Já no cinema do vizinho ao sul, o “sonho americano” é associado a aproveitad­ores ou desilusões.

A desconfian­ça mútua entre as nações remonta ao século 19, e o muro de Donald Trump é só o mais recente capítulo na atribulada relação.

No começo dos anos 1800, a potência local era a filial do império espanhol baseada no México, como os nomes no mapa da Califórnia atestam.

Em 1821, o México tornouse independen­te, com o apoio da nova nação vizinha.

Os problemas começaram no Texas. Em 1835, uma revolta de colonos americanos locais levou à criação de uma república, que acabou anexada aos EUA em 1846, disparando um conflito militar.

Quem levou a pior na Guerra Mexicano-Americana, encerrada em 1848, foram os latinos: 55% de seu território caiu em mãos americanas.

A situação amainou no governo de Porfirio Díaz (1876 a 1910), quando o líder buscou atrair investimen­tos estrangeir­os, ainda que a ele seja atribuída a frase “Pobre México! Tão longe de Deus, tão perto dos Estados Unidos”.

Na virada do século 20, americanos dominavam 75% das minas mexicanas, mantendo um nível de investimen­to que hoje é vital para a economia local —quase 60% dos US$ 30 bilhões estrangeir­os que entraram no país em 2015 vieram dos EUA.

O declínio do regime e a década seguinte viram a Revolução Mexicana reabrir as feridas de desconfian­ça, com os EUA dando e retirando apoio à várias facções rivais. Revolucion­ários como Pancho Villa viraram modelo de vilões nos filmes do futuro.

O evento central dessa construção de imagem foi a incursão feita pelo general John Pershing em 1916 para prender Villa, que havia atacado vilas americanas. O figurão teve de recuar, humilhado. No México, a imagem do invasor cristalizo­u-se.

Aestabiliz­açãoapósar­evolução levou a uma relativa normalizaç­ão na relação com os EUA. Mesmo quando Lázaro Cárdenas nacionaliz­ou as empresas estrangeir­as de petróleo em 1938, Washington não retaliou.

A partir de 1942, a questão migratória ganhou relevância como o Programa Braceros, que trouxe trabalhado­res mexicanos para ajudar a suprir mão-de-obra durante a Segunda Guerra e depois.

Encerrado em 1964, ele indiretame­nte estimulou o influxo de imigrantes ilegais que acabaria sendo denunciado em 1985 pelo presidente Ronald Reagan como “uma invasão” —o número subira de 87 mil para quase 4 milhões anuais no período.

As drogas são outro problema. A violência dos cartéis mexicanos disputando o mercado americano aumenta a pressão migratória.

A fusão cultural, a despeito das diferenças, seguiu curso irrefreáve­l. Híbridos como a língua de rua “espanglês” e a culinária “tex-mex” (que insistem em chamar de mexicana no Brasil) são prova disso. A maioria dos estrangeir­os nos EUA é mexicana.

A dinâmica é vista em Hollywood, com o sucesso de diretores como o oscarizado Alejandro Iñárritu (“O Regresso”), e na evolução da descrição no cinema mexicano dos imigrantes: antes eram traidores da pátria em fuga, e a partir de “Os Esquecidos” (Luís Buñuel, 1950) ganharam status de heróis oprimidos. O muro tem tudo para estrelar novas produções.

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E.B. & E.C. Kellogg/Reprodução Ilustração sobre a batalha de Chapultepe­c. durante a Guerra Mexicano-Americana, vencida pelos norte-americanos

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