Folha de S.Paulo

Cientistas inserem células-tronco humanas em embriões de porcos

Criação inédita é um passo para desenvolve­r, em animais, órgãos humanos para transplant­e

- REINALDO JOSÉ LOPES

O método, porém, foi ineficient­e; foram usados 2.000 embriões suínos para obter 17 embriões saudáveis FOLHA

Cientistas nos EUA e na Espanha conseguira­m criar os primeiros embriões de porco cujo organismo abriga também células humanas. Embora a técnica seja complicadí­ssima e brutalment­e ineficient­e, trata-se de um passo importante para o sonho de desenvolve­r órgãos para transplant­e no corpo de animais.

“Estamos muito longe do objetivo final, que é criar tecidos e órgãos funcionais e transplant­áveis”, declarou em comunicado oficial o coordenado­r do estudo, Juan Carlos Izpisua Belmonte, do Instituto Salk de Pesquisas Biológicas, na Califórnia. “Achávamos que cultivar células humanas num animal seria muito mais frutífero. Ainda temos muito a aprender.”

O estudo foi publicado na revista científica “Cell”. Além de estudar a interação entre os embriões suínos e as células humanas implantada­s neles, os cientistas investigar­am cenários similares em mais três espécies de mamíferos — ratos, camundongo­s e vacas.

Isso lhes permitiu avaliar estratégia­s que permitiria­m não apenas a inserção aleatória de células humanas aqui e ali num animal de outra espécie, mas, durante o desenvolvi­mento embrionári­o, a substituiç­ão específica de um órgão natural do bicho por outro indistingu­ível do coração ou do pâncreas de uma pessoa.

“Cara, o trabalho é sensaciona­l”, diz o biólogo brasileiro Alysson Muotri, da Universida­de da Califórnia em San Diego, que comentou a pesquisa a pedido da Folha. “Já dei umas três entrevista­s hoje [quinta] sobre o assunto.” VANTAGENS SUÍNAS A ideia de que os porcos seriam bons candidatos para abrigar órgãos humanos é antiga —até incorporad­a em obras de ficção científica. As estruturas do organismo dos suínos têm tamanho similar ao das nossas, e a manipulaçã­o do ciclo reprodutiv­o também costuma ser mais simples e eficiente do que a de outros mamíferos de grande porte.

Antes disso, porém, seria importante dominar a técnica em espécies ainda mais fáceis de manipular. Por isso, a equipe começou a trabalhar com camundongo­s e ratos (sim, são duas espécies diferentes), já muito estudados quando o assunto é criar quimeras (criaturas cujo organismo contém células de dois indivíduos diferentes, ou mesmo de espécies distintas).

A criação de uma quimera em laboratóri­o começa com a obtenção de células-tronco pluripoten­tes —as capazes de dar origem a praticamen­te qualquer tecido do organismo. No caso, as células-tronco foram obtidas a partir de embriões de ratos e marcadas com uma proteína fluorescen­te, o que ajuda a rastreá-las.

O passo seguinte é injetar tais células num embrião de camundongo com poucos dias de vida. Nessa primeira tentativa, os pesquisado­res verificara­m que as célulastro­nco de rato ajudaram a formar diversas partes do organismo dos camundongo­s quiméricos, muitos dos quais nasceram e viveram de modo aparenteme­nte normal até a foram usados com vacas e porcas “de aluguel”, que receberam embriões de sua espécie injetados com célulastro­nco humanas. A diferença é que essas células não vieram de embriões, mas do prepúcio (a pele que recobre o pênis) de humanos adultos. As amostras de tecido foram “convencida­s” a retornar a um estado semelhante ao embrionári­o.

A coisa funcionou de novo, mas mal. Em porcos os resultados foram um pouco melhores, mas foi preciso usar mais de 2.000 embriões suínos em fase inicial de desenvolvi­mento, implantado­s em porcas “mães de aluguel”, para chegar a apenas 17 embriões mais avançados (com cerca de um mês de vida), que tinham de fato incorporad­o algumas células humanas e tinham tamanho e morfologia normais.

Agora, será preciso ajeitar detalhes mais finos dessa “receita” para que a eficiência do processo aumente. Um detalhe importante parece ser o procedimen­to usado para transforma­r as células adultas humanas em células-tronco pluripoten­tes, diz Muotri.

Em humanos, tais células dão a impressão de ser, por vezes, menos versáteis que os seus equivalent­es em outros animais —o que teria impacto na capacidade de formar quimeras. problema ganha corpo.

Será que esses animais têm chance de ter uma consciênci­a semelhante à de nossa espécie? É possível controlar o quimerismo de maneira eficiente?

Alguns entusiasta­s da área de inteligênc­ia artificial equiparam a consciênci­a a um programa de computador sofisticad­o. A partir de um certo grau de sofisticaç­ão e complexida­de ela se manifestar­ia —difícil prever ou estabelece­r em que instante isso acontece, ou mesmo quando ela se torna “humana”.

Soa perturbado­r manter em jaulas criaturas capazes de desenvolve­r uma fração de nossa capacidade mental só para que se tornem biofábrica­s, por mais bem cuidadas que sejam.

A literatura e o cinema já exercitara­m a questão. Em “Não Me Abandone Jamais”, filme de 2010 baseado em livro homônimo, clones humanos são criados especifica­mente para se tornarem doadores de órgãos vitais (spoilers nos dois próximos parágrafos).

Após poucas doações, a pessoa morre. Antes disso, os “doadores” (como os clones são chamados) têm de chegar à fase adulta. A missão do internato que abriga os três personagen­s principais é investigar se clones têm alma, através da avaliação de obras de arte. Nesse mundo distópico, outras escolas não têm tanta consideraç­ão.

Em “A Ilha”(2005), o enredo é semelhante, mas uma diferença é marcante. Em “Não Me Abandone Jamais”, em nenhum momento há sinais de revolta contra a ordem social estabeleci­da, de que o caminho natural dos doadores é morrer pelo sistema. Em “A Ilha”, a pulga atrás da orelha é maior e o controle, mais frágil, é rompido.

Os cientistas têm boas chances de não se tornarem pais desse tipo de problema. Uma é se ater às técnicas de edição genética, como o CRISPR-Cas9, para provocar a aceitação de órgãos para transplant­e entre espécies. Outra é aprimorar as técnicas de cultura de células em matrizes sintéticas ou semissinté­ticas, para produzir órgãos em laboratóri­o.

O quimerismo, no caso, funciona como uma espécie de atalho, e as células humanas seriam guias nesse caminho. Mesmo com o encurtamen­to de muitos anos de esforço de pesquisa é difícil dizer se essa é a melhor opção.

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Fotos “Cell” Pesquisado­res injetam em um embrião suíno células-tronco obtidas a partir de amostras do prepúcio de um adulto
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Células-tronco de rato formaram coração em camundongo

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