Refugiados, árbitro e jogador da Síria recomeçam vida na Alemanha
Dupla volta ao futebol na Europa após deixar país de origem, que vive guerra civil
FOLHA
Hamdi Al-Kadri e Mohammed Jaddou saem de casa sem medo da morte na próxima esquina. Isso é muito mais do que tinham quando viviam na Síria, país da Ásia Ocidental devastado pela guerra civil, que causou 400 mil mortes. São cinco milhões de refugiados. Entre eles, a dupla que tenta reconstruir a vida no futebol em caminhos opostos na Alemanha.
“Se você vem da Síria, com certeza conhece alguém que morreu na guerra ou tentando fugir dela”, afirma Jaddou à Folha, por e-mail.
Aos 19 anos, ele é a maior revelação do futebol sírio. Em 2014, foi um dos principais responsáveis por classificar a seleção para a Copa do Mundo sub-17, disputada no Uruguai em 2015. Quando o torneio chegou, o meia já havia desafiado a travessia do Mar Mediterrâneo para deixar a terra natal.
“O futebol não parou na Síria com a guerra, mas a não ser que você more em Damasco, é arriscado demais. E o esporte passou a ser a última das minhas preocupações”, diz Al-Kadri, por meio de sua filha Leen. Ele não fala inglês.
Al-Kadri, 51, era o principal árbitro do futebol local. Esteve na Copa da Alemanha, em 2006. Foi um dos assistentes deixados pela Fifa na reserva, à espera de alguma lesão dos titulares, o que não aconteceu. Ele decidiu se refugiar na Europa bem antes de Jaddou, em 2012.
“Não havia mais condições de continuar”, conclui.
Al-Kadri, 51, chegou a desistir da arbitragem. Em outubro do ano passado, foi convidado a apitar partidas da Postbauer-Heng, a nona divisão do futebol alemão. Não recebe nada por isso, mas se diz grato porque o ajuda na integração ao seu novo país. Quando entra em campo, é aplaudido.
“Antes de chegarmos à Europa, moramos na Jordânia. O objetivo sempre foi ir para a Alemanha. Quando estive aqui na Copa do Mundo, vi o quanto é um lugar especial. Tudo funciona. Não se parece com nada o que vivi antes”, afirma o árbitro.
A jornada para escapar da guerra também foi algo que Jaddou jamais havia visto. O jogador não dormiu por três noites. Ele e os outros homens do barco superlotado se revezavam na missão de tirar a água que não parava de entrar. No segundo dia, o motor estourou. A embarcação ficou à deriva por mais de 24 horas, até ser vista por um navio cargueiro, que alertou a guarda costeira italiana. SÍRIA NA COPA Hoje, Jaddou está na base do Arminia Bielefeld, da segunda divisão alemã.
“O que eu sempre quis foi jogar bola. Isso estava se tornando impossível na Síria. O governo nos obrigava a passar por um período de treinos em Damasco. Quem não fosse, seria punido. No caminho, o ônibus passava por tiroteios. Se as forças rebeldes nos encontrassem, estaríamos mortos. Aquilo não era vida”, relata.
Para fugir, a família vendeu a casa em Latakia, cidade do litoral. O governo italiano o deixou na Sicília. Ele e o tio Zakaria rumaram para o norte. Um voluntário lhe deu uma bola de presente. Era com ela que treinava todos os dias.
“Pagamos tudo o que restava do nosso dinheiro para um intermediário nos levar para a Alemanha”, afirma.
A Síria ainda tem chance de disputar a Copa do Mundo na Rússia, em 2018. Em março, faz partida decisiva contra Uzbequistão.
Jaddou nem sonha em voltar a vestir a camisa da seleção. Sabe que, para o regime que comanda o pais, se tornou um nome maldito.