Folha de S.Paulo

Isso também tem a ver com os bizarros rituais artísticos que testemunho­u na casa do

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Quando esteve em Nova York pela primeira vez, ainda um menino de dez anos, Hélio Oiticica ficou maravilhad­o com o anúncio de “Bonita e Valente” na Times Square —o revólver da mocinha do musical saltava para fora da placa, flutuando sobre a praça mais iluminada do planeta.

Décadas depois, já morando num loft na Segunda Avenida, o artista dizia se sentir enrolado em dinamite e sentado num barril de pólvora. A metrópole americana era sua Babilônia, a barriga de Moby Dick, uma ilha infernal.

Em Manhattan, onde viveu entre 1969 e 1978, Oiticica experiment­ou os altos e baixos de um espetáculo violento. Foi da disciplina monástica dos primeiros anos, quando tentava criar uma versão de sua “Tropicália” para o Central Park, à esbórnia das boates gays do Village e das noites em claro embaladas por Jimi Hendrix e pelo efeito da cocaína.

Esses anos de delírio superlativ­o estão no centro da maior retrospect­iva já dedicada ao neoconcret­ista em solo americano. Depois de passar por Pittsburgh, a mostra vai agora a Chicago e em junho encerra a turnê no Whitney, em Nova York, sua “volta para casa”, nas palavras de Donna De Salvo, diretora do museu.

“Ele tinha a ideia utópica de juntar a América do Sul a Nova York, era fascinado pela cultura daqui, pela Yoko Ono, pelo John Lennon, pelo John Cage, pelas estrelas que rodeavam o Andy Warhol”, ela conta. “Foi um tempo muito fértil. Ver essa exposição é como andar pelo cérebro dele.”

Seus tempos nova-iorquinos, de fato, ficaram mais no plano das ideias. Oiticica, que se mudou para Nova York logo depois de participar da mostra “Informatio­n”, no MoMA, não tinha dinheiro para tirar seus projetos do papel ali.

Ele passou anos escrevendo as “Newyorkais­es”, um livro que nunca terminou, e chegou a inventar toda uma instalação a ser construída depois no Rio pelo artista Carlos Vergara, que recebeu seus desenhos pelo correio.

“Filtro”, como lembra César Oiticica Filho, sobrinho do artista, era um labirinto colorido cheio de rádios sintonizad­os em estações diferentes, televisore­s e, no fundo, um copo de suco colorido, “como se você bebesse a cor”.

Esse ambiente cacofônico lembra o caos orquestrad­o de seu apartament­o em Nova York. O artista Miguel Rio Branco, que viveu oito meses com Oiticica no loft da Segunda Avenida, conta que eles dormiam em camas “parecidas com as dos hospitais indianos”, embrulhada­s em véus coloridos. Eram partes dos famosos “Ninhos” que o artista construiu no MoMA, uma espécie de escultura para morar.

“Ele tinha essa coisa de chegar, ligar a televisão e pôr um disco para tocar”, lembra o cineasta Neville d’Almeida. “A gente trabalhava ouvindo blues, jazz, Jim Morrison, Jimi Hendrix, Jefferson Airplane, Bob Dylan, Led Zeppelin. Essas músicas eram a trilha sonora das nossas conversas.”

Muitos desses músicos e bandas, aliás, Oiticica viu tocar ao vivo no Fillmore East, templo do rock’n’roll que ficava do lado de sua casa. Nas famosas fitas cassete que gravava e mandava para amigos no Brasil, as “Héliotapes”, o artista conta como a experiênci­a da música ali moldou seu jeito de pensar a performanc­e. GANGUES E TRAVESTIS

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