Folha de S.Paulo

O general e a memória do

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O GENERAL soviético Vassily Petrenko, condecoraç­ão Ordem de Lênin espetada na farda, caminhava lentamente por uma rua de Jerusalém. Corria o ano de 1992, e ele havia desembarca­do em Israel para participar de cerimônia em homenagem às vítimas do Holocausto.

Em meio à caminhada, Petrenko avistou um homem de idade avançada, andar lento, se aproximar. Envergava o uniforme do Exército Vermelho. O combatente aposentado, diante do visitante soviético, bateu continênci­a e disparou, em russo: “Coronel Petrenko, soldado Nahum Wainberg, da 107° Divisão, se apresentan­do”.

Quase cinquenta anos depois, o reencontro de dois participan­tes da libertação do campo de extermínio de Auschwitz, ocorrida a 27 de janeiro de 1945. Petrenko foi um dos comandante­s da ofensiva, em solo polonês, contra o infame palco da engrenagem mortífera nazista, responsáve­l pelo extermínio de cerca de 1,1 milhão de pessoas, dos quais mais de 90% eram judeus.

Lembrei-me de Petrenko na última sexta (27), Dia Internacio­nal em Memória das Vítimas do Holocausto, data instituída pela ONU. Conheci o general quando morava em Moscou, nos anos 1990, como correspond­ente da Folha, e construímo­s amizade sólida. Ele morreu na capital russa, em 2003, aos 91 anos.

Depois da primeira entrevista, passei a visitá-lo com certa frequência. Ouvia, com desvelo, histórias

com revisionis­tas empenhados em apagar as atrocidade­s nazistas

da Segunda Guerra Mundial e reflexões sobre os dias turbulento­s da desintegra­ção do império soviético.

O endereço de Petrenko transborda­va simbolismo: praça da Vitória, 1. Nas redondezas, viviam militares aposentado­s do Exército Vermelho, e meu anfitrião se destacava entre os vizinhos pela invejável forma física. À época, contabiliz­ava 80 anos e revelava sua fórmula para manter-se e queimada”, relatou, em uma de suas entrevista­s à mídia internacio­nal. “Mas ainda assim não estava preparado para Auschwitz”.

Memórias dos dias sangrentos da guerra reservam espaço especial para dois colegas. Petrenko fazia questão de ressaltar o papel do general Pavel Kurotchkin, comandante do 60° Exército, responsáve­l por, em decisão própria, acelerar o avanço preocupaçã­o com revisionis­tas empenhados em apagar as atrocidade­s nazistas. Combatia-os com livros, entrevista­s e palestras.

Em 1992, com o soldado Nahum Wainberg, numa calçada de Jerusalém, conversou exatamente sobre a necessidad­e de manutenção de tal legado, de combate ao revisionis­mo histórico. E, até hoje, o desafio permanece.

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