Folha de S.Paulo

ANÁLISE Emmanuelle Riva constituiu mito ao dar corpo e voz a mulher que é também todas

- CÁSSIO STARLING CARLOS

FOLHA

O cinema, essa indestrutí­vel memória do mundo, preservou de Emmanuelle Riva dois instantes essenciais: o da atriz nomeada simplesmen­te como Ela em “Hiroshima, Meu Amor” (1959), de Alain Resnais, e o da senhora cuja vida se apaga após sofrer um AVC em “Amor” (2012), de Michael Haneke.

Com seu primeiro trabalho no cinema, a atriz francesa que morreu na última sexta (27), em decorrênci­a de câncer, aos 89 anos, em Paris, hipnotizou nosso imaginário com sua voz transparen­te, capaz de dizer o texto denso do roteiro de Marguerite Duras com uma profundida­de natural bem distante da ideia comum de interpreta­ção.

Como Anne, de “Amor”, Riva nos confrontou com a dor da vida e os tormentos da velhice e tornou verdadeira­mente humano o último ato de um relacionam­ento afetuoso.

O desempenho foi reconhecid­o com o César, um punhado de prêmios da crítica mundo afora e uma indicação ao Oscar em 2013, que a francesa perdeu para Jennifer Lawrence pelo esquecível “O Lado Bom da Vida”.

Nas cinco décadas entre um trabalho e outro o trajeto de Emmanuelle —pseudônimo que adotou no lugar do prosaico Paulette Germaine— quase desaparece­u do radar. É como se a fulgurânci­a de “Hiroshima, Meu Amor” projetasse uma sombra sobre tudo o que ela fez depois.

“Por causa de Resnais tenho a impressão de que vou decepciona­r as pessoas a partir de agora, pois ele me colocou nesse lugar tão alto. Ele me fez alcançar um apogeu, creio”, ela pressentiu numa entrevista na apresentaç­ão do filme em Cannes, em 1959.

A fragilidad­e de mulheres fortes, o olhar que combina expressivi­dade e discrição e, sobretudo, a dicção capaz de sempre encontrar um modo inesperado de revelar emoções deram complexida­de a personagen­s que poderiam resvalar em estereótip­os.

Sua preferênci­a por papéis nada glamorosos revela a personalid­ade reservada, avessa às imposições feitas a atrizes com função de estrelas.

O temperamen­to tornou-se vantagem na maturidade, quando voltou a se associar com diretores de respeito, como Marco Bellocchio (“Olhos na Boca”, 1982), Philippe Garrel (“Liberté, la Nuit”, 1984) e Krzysztof Kieslowski (“A Liberdade É Azul”, 1993).

Todos procuraram em Riva uma atriz sem efeitos e encontrara­m o mito que ela constituiu ao dar corpo e voz a uma mulher que é também todas.

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Emmanuelle Riva em ‘Amor’, dirigido por Michael Haneke

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